Miss Dollar: Machado olhos verdes

Machado olhos verdes. Qualquer conto de Machado de Assis, mesmo os mais bobinhos, traz algo de cativante e perspicaz. Além disso, temos as divertidas obsessões machadianas: a principal delas, parece-me, se refere aos olhos e ao olhar das mulheres. O famoso “olhos de ressaca” é apenas um exemplo na coleção de olhos de Machado.

Entre os olhos machadianos, os verdes são citados em relação aos olhos verdes de Shakespeare. Recorde-se que, em Othello, Iago adverte:

“O beware, my lord, of jealousy; It is the green-eyed monster which doth mock the meat it feeds on. That cuckold lives in bliss who, certain of his fate, loves not his wronger, but, oh, what damned minutes tells he o’er who dotes, yet doubts – suspects, yet soundly loves!” E Othello suspira “O, misery!”.

O ciúme é um monstro de olhos verdes que zomba da carne da qual se alimenta.

Salvo engano, não se diz, na peça, que Desdêmona tem olhos verdes, todavia a fala de Iago me parece ligar Desdêmona e o ciúme por meio da cor dos olhos de ambos.

Em Machado, no conto “O diplomático”, é a esperança que tem olhos verdes. Rangel se interessa por Joaninha, todavia ele é indeciso, fraco, “não era homem de saltar muros”, embora na imaginação “fazia tudo, raptava mulheres e destruía cidades”.

Rangel tem um concorrente ao amor de Joaninha e ambos comparecem aos encontros na casa da moça. O concorrente se destaca em um jantar e o narrador nos conta que “Rangel passou da cólera ao desânimo e, acabada a ceia, pensou em retirar-se. Mas a esperança, demônio de olhos verdes, pediu-lhe que ficasse, e ficou. Quem sabe?”

Da mesma forma que em Othello, não se declara a cor dos olhos de Joaninha.

Entretanto, é no conto “Miss Dollar” que os olhos verdes têm papel fundamental.

Mendonça, médico, trinta e quatro anos, conhece Margarida, viúva (outra obsessão de Machado), vinte e oito anos, moça bonita e a “grande distinção daquele rosto (…) eram os olhos (…) duas esmeraldas nadando em leite”. Mendonça nunca vira olhos verdes, mas tem prevenção contra essa cor de olhos. Uma “prevenção literária”, diz Machado, porque Mendonça relacionava os olhos verdes com um poema de Gonçalves Dias (“são uns olhos verdes, verdes, uns olhos de verde-mar”). Mendonça afirmava que fugiria com terror de olhos verdes porque verde é a cor do mar e ele buscava evitar as tempestades de um e dos outros.

(Aqui vai um parêntese: Machado não diz, mas quem sabe a tal “prevenção literária” de Mendonça se fundamente também em Shakespeare e no ciúme, uma elipse mental, visto que o poema de Gonçalves Dias nem fala em tempestades: “uns olhos de verde-mar, quando o tempo vai bonança; uns olhos cor de esperança, uns olhos por que morri; que, ai de mim! Nem já sei qual fiquei sendo depois que os vi!”).

Mendonça fala a um amigo sobre Margarida e sobre a sua prevenção (“pueril” e “ridícula”): “poderia vir a gostar dela se não tivesse olhos verdes”. O amigo lhe diz que “a cor dos olhos não vale nada, a questão é a expressão deles. Podem ser azuis como o céu e pérfidos como o mar.”

A observação do amigo pareceu-lhe “tão poética” quanto a de Gonçalves Dias e abalou a prevenção de Mendonça que, daí em diante, parte para a tentativa de conquistar a difícil Margarida.

Deixo aqui a sugestão da leitura do conto para que se possa apreciar as sutilezas de Machado.

Faço ainda três observações:

(1) excelente conto de Machado, com idas e vindas e mal-entendidos;

(2) Mendonça era “inteligente, instruído e dotado de bom senso”; apesar disso, tinha o seu calcanhar de Aquiles, a prevenção aos olhos verdes, somente isto. “Outros Aquiles andam por aí que são da cabeça aos pés um imenso calcanhar.” E acrescenta Machado: “O amor de uma frase era capaz de violentar-lhe afetos; sacrificava uma situação a um período arredondado.”;

(3) Aceitemos, diz ele, os ridículos de Mendonça: “quem não os tem? O ridículo é uma espécie de lastro da alma quando ela entra no mar da vida; algumas fazem toda a navegação sem outra espécie de carregamento.”

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