A morte de Bergotte e a tela de Vermeer.

A morte de Bergotte e a tela de Vermeer. Proust, A prisioneira.

Bergotte estava doente, porém um crítico escreveu sobre o quadro Vista de Delft de Vermeer que estava em exposição em Paris. Bergotte adorava e cria conhecer muito bem o quadro. Todavia, o crítico destacava um pedacinho de parede amarela, tão impressionante que era como uma preciosa obra de arte chinesa. Bergotte não se recordava desse pedacinho amarelo e foi visitar a exposição.

Mais un critique ayant écrit que dans la Vue de Delft de Ver Meer (prêté par le musée de La Haye pour une exposition hollandaise), tableau qu’il adorait et croyait connaître très bien, un petit pan de mur jaune (qu’il ne se rappelait pas) était si bien peint, qu’il était, si on le regardait seul, comme une précieuse oeuvre d’art chinoise […].

Mesmo não se sentindo bem, Bergotte se põe a admirar o quadro de Vermeer. Graças ao crítico, ele nota, pela primeira vez, os pequenos personagens em azul, nota que a areia era rosa, e o pequeno pedacinho de parede amarela.

[..] Il remarqua pour la première fois des petits personnages em bleu, que le sable était rose, et enfin la précieuse matière du tout petit pan de mur jaune.

No entanto, abatido pela doença, Bergotte começa a passar mal, cada vez pior. Proust faz, então reflexões sobre a morte e também sobre o esforço dos artistas.

Nova crise prostrou-o, ele rolou do canapé ao chão, acorreram todos os visitantes e guardas. Estava morto. Morto para sempre? Quem o poderá dizer? Certo, as experiências espíritas não fornecem a prova de que a alma subsista, como também não a fornecem os dogmas da religião. O que se diz é que tudo se passa em nossa vida como se nela entrássemos com o fardo de obrigações contraídas numa vida anterior; não existe razão alguma em nossas condições de vida nesta terra para que nos julguemos obrigados a praticar o bem, a ser delicados, mesmo a ser corteses, nem tampouco para que o artista culto se julgue obrigado a recomeçar vinte vezes um trabalho, cuja admiração que suscitará pouco lhe há de importar ao corpo comido pelos vermes, como o pedaço de parede amarelo pintado com tanta ciência e requinte por um artista desconhecido para sempre e apenas identificado pelo nome de Vermeer. Todas essas obrigações que não encontram sanção na vida presente parecem pertencer a um mundo diferente, fundado na bondade, no escrúpulo, no sacrifício, mundo diferente deste e do qual saímos para nascer nesta terra, antes talvez de voltar a viver nele sob o império dessas leis ignotas a que obedecemos porque trazíamos em nós o seu ensinamento, sem saber que aí as traçara – essas leis de que nos aproxima todo labor profundo da inteligência e que são invisíveis, nem sempre, aliás! – para os tolos. De sorte que não há inverossimilhança na ideia de não ter Bergotte morrido para sempre. Enterraram-no, mas durante toda a noite fúnebre, nas vitrinas iluminadas, os seus livros, dispostos três a três, velavam como anjos de asas espalmadas e pareciam, para aquele que já não existia, o símbolo da sua ressurreição.

O quadro de Vermeer pode ser visto em alta resolução na Wikipedia. Hoje, não precisamos mais sair doentes para ver um quadro famoso. Evidentemente, ver uma obra de arte ao vivo é muito melhor que vê-la em uma tela de computador. Entretanto, hoje, Bergotte não teria saído de casa com a saúde precária para rever o quadro.

Vista de Delft (1661) está na Mauritshuis, a Casa de Maurício, um pequeno e excepcional museu na cidade de Haia, que foi a casa do nosso Maurício de Nassau, e que expõe obras da coleção do próprio. Lá encontramos também a Moça com brinco de pérola, Vermeer, e a A lição de anatomia do Dr. Tulp, Rembrandt.

A seguir, a tela de Vermeer e os detalhes que são citados por Proust. Mas aconselho ver o quadro na Wikipedia.