Cento e quarenta e nove dias da peste. Em pouco, chegará setembro, e continuamos a manter distância dos outros seres humanos. Evidentemente, há aqueles que frequentam bares e festas, não se incomodam com a possibilidade da morte. Os dias são iguais para aqueles que fogem da peste. As leituras: ele se dedica a ler o Bardo de Avon, nas poucas horas vagas do trabalho em casa. O sono e o sonho.
Ele teve um sonho estranho, todo sonho é estranho, aquele parece que demorou horas. Era um carnaval de pandemia. Nenhuma força vai conseguir impedir o carnaval nas infelizes terras pernambucanas. O “povo” não vai se controlar e carnaval é descontrole.
No sonho, ele voltava do trabalho, carregava um envelope de papel madeira recheado de documentos. Chegava ao centro da cidade, ia para o carnaval de pandemia encontrar com a esposa. Haviam combinado. As ruas e as pontes da cidade estavam mais largas do que no “mundo real”, ele achava estranho que as ruas e pontes estivessem mais largas. As edificações continuavam antigas e decrépitas.
Os blocos de carnaval circulavam pelas pontes e ruas, com menos gente, mais organizados, era um carnaval de pandemia, as pessoas pulavam carnaval distanciadas umas das outras. Mas isso desorganizava vez em quando e se formava um bolo de gente. Ele andava entre os foliões, de bloco em bloco, e não a encontrava. E se maldizia e pensava que aquilo não estava certo, que a peste continuava no ar e todos se contaminariam. Por que ela resolvera ir ao carnaval?
Em um bloco, encontrava um conhecido e perguntava por ela: fora vista em outro bloco. Sempre em outro bloco. E ele seguia procurando, o envelope de documentos na mão, sentindo-se ridículo. Sabia que iria encontrá-la acabada, destruída, depois do encerramento do desfile do último bloco. E foi assim, perguntando e perseguindo, encontrou-a dentro de um galpão onde um bloco recolhia, via-se o vírus esverdeado por todos os lados na luz amarela, ela deitada em cima de uma mesa, dormitando, cansada. Ela reclamou pela demora dele. Ele ajudou-a a levantar: “procurei você por toda parte, você não parava em lugar nenhum, vamos para casa, querida, não deviam ter deixado esse carnaval acontecer”.
*
“As torres que alcançam as nuvens, os esplêndidos palácios, os templos solenes, o próprio globo imenso, sim, com tudo o que ele contém, tudo se dissolverá, e como este intangível desfile nebuloso, não deixará sequer um vestígio. Nós somos coisas assim, feitos como os sonhos são feitos; e nossa pequena vida é cercada pelo sono.”
“The cloud-capp’d tow’rs, the gorgeous palaces, The solemn temples, the great globe itself, Yea, all which it inherit, shall dissolve, And like this insubstantial pageant faded Leave not a rack behind. We are such stuff As dreams are made on; and our little life Is rounded with a sleep.”
William Shakespeare, A tempestade.