O moleque Ricardo – José Lins do Rego (1935)

O moleque Ricardo – José Lins do Rego (1935) – Editora José Olympio – 190 páginas.

Este é um livro excepcional, entretanto o final deixa algo a desejar. O final diminui um pouco o brilho do livro.

Ricardo é um garoto negro de dezesseis anos que nasceu e trabalha em um engenho de cana da Paraíba. Ele percebe que a vida no engenho nunca vai mudar e recebe o convite de um condutor de trem para ir trabalhar no Recife, na casa do condutor. Ricardo vai sem avisar nada a ninguém, nem mesmo a sua mãe. Depois de algum tempo trabalhando na casa do condutor, Ricardo consegue emprego na padaria de Seu Alexandre, no bairro da Encruzilhada. Ricardo começa a trabalhar como carregador do balaio de pão e logo é promovido para cobrador: a pessoa que segue o balaieiro, tocando corneta e anotando o pão vendido. Daí em diante, a história se passa quase toda na Encruzilhada, com passagens por rua da Aurora, Nova, Imperatriz, Imperador, pelo mangue e pelo Fundão. É possível que o autor tenha escolhido a Encruzilhada como um símbolo das dúvidas de Ricardo: ficar no Recife ou voltar para o engenho, fazer greve ou se afastar dos sindicatos, entrar ou nao para o xangô de Pai Lucas, casar ou não.

O tempo passa, Ricardo trabalha e junta dinheiro, se relaciona com os amigos da padaria, observa a vida, arranja algumas namoradas. O Recife vivia uma época convulsionada na qual os trabalhadores tentavam melhorar as condições de trabalho e os salários. Entretanto, o que se vê no romance é que os presidentes de sociedades de trabalhadores e alguns políticos manipulavam os operários para fazer as greves e quem lucrava ao final eram esses presidentes e políticos, os trabalhadores continuavam na merda, quando não feridos ou mortos em confrontos com o exército. Ricardo evitava se meter nessas brigas e greves.

Depois de alguns anos no Recife, Ricardo participa de seu primeiro Carnaval. A cidade ficava transtornada, modificada, enlouquecida nessa época, o pobre esquecia de suas misérias, e Ricardo entra no frevo com o bloco Paz e Amor, criado pelo pessoal que vive dentro do mangue. No bloco, Ricardo começa um namorinho com Odete. Entretanto, o fato de visitá-la constantemente após o Carnaval “obriga” o moço a pedir Odete em casamento. Logo após o pedido, Ricardo já se arrepende, com saudade de sua vida despreocupada de solteiro.

Ricardo casa-se com Odete e vai morar com os sogros. Vive infeliz. Para sorte dele, Odete logo morre de tuberculose e Ricardo volta a morar em seu quartinho nos fundos da padaria.

Neste ponto, o livro se encaminha para o final, que não se encaixa com toda a história de Ricardo. Ele, mais um observador que um agente, nunca queria participar das greves e já vira seus amigos traídos, feridos e mortos, entretanto, dessa vez, resolve se meter na história. A greve termina mal e Ricardo e seus companheiros são presos e enviados para o presídio em Fernando de Noronha.

Além da incoerência que percebo nesse movimento de Ricardo em direção aos sindicatos, há um problema quanto à descrição mesma do fim do movimento grevista. Diz-se que a greve é geral, a cidade está parada, contudo o autor só nos conta da prisão de cerca de cinquenta trabalhadores que estavam em um sobrado com Ricardo. Cinquenta trabalhadores não fazem uma greve geral.

Há, também, um problema estrutural. O livro inicia com a chegada ao engenho de uma carta de Ricardo avisando que ele viria do Recife passar uns dias ali. Entretanto, essa carta fora escrita antes da prisão. Ora, o autor cria, de início, uma expectativa no leitor de que o livro conterá uma estrutura circular, avisa-se do retorno de Ricardo e leva-se a história até o ponto em que ele se prepara para voltar ao engenho, é o que leitor espera e não acontece. Outra questão que incomoda no final é a falta de notícias posteriores sobre Ricardo. De certo modo, o autor conformava um personagem metódico, precavido, desconfiado. Ricardo fazia um pé-de-meia e tudo levava a crer que ele poderia vir a ser, até mesmo, um pequeno empresário, um dono de padaria. O final se desvia dessa expectativa.

Entretanto, é um livro magnífico. A linguagem utilizada é exatamente a deliciosa linguagem popular do Recife e do Nordeste. Para quem é de Recife, o livro é curiosíssimo. A Encruzilhada, nas primeiras décadas do século vinte, parece até ser uma cidade apartada do Recife. O Recife fica longe, o Recife é outra coisa. Da mesma forma que ocorre ainda hoje nos bairros mais distantes da metrópole, o pessoal da Encruzilhada de Ricardo diz “vou na cidade”, ou “vou ao Recife” quando quer se referir ao centro do Recife. O livro é estupendo ao mostrar o quanto o Recife, Pernambuco e o Brasil involuíram urbanisticamente. No Recife de Ricardo, os bairros eram interligados ao centro por trens e, no centro e nos bairros circulavam os bondes, chamados de maxambombas. O Recife era ligado a inúmeras cidades do interior e de outros estados p or trens. Ou seja, tudo era, no passado do Recife, como é hoje em qualquer cidade civilizada do mundo. No Recife e no Brasil, a indústria do automóvel, do pneu e do petróleo, mancomunada com a politicalha brasileira eternamente corrupta, destruíram a malha ferroviária do país. O que se tem é isso, uma cidade merda e um país merda onde o automóvel impera.

Um livro essencial, imperdível, em especial para qualquer habitante de Recife.

Trechos:

“A casa inteira recebeu a carta com muita alegria. Ricardo vinha do Recife passar uns dias com eles. Há anos que se fora. Ainda quase menino, sumira-se do engenho sem ninguém saber para onde. Ricardo fugiu. Era assim como se comentava a saída dele para outras terras.”

“O Recife estava próximo. A cidade se aproximava dele. Teve até medo. Falavam no engenho do Recife como de uma Babel. “Tem mais de duas léguas de ruas.” “Você numa semana nao corre.” E bondes elétricos, sobrados de não sei quantos andares. E gente na rua que só formiga. O dia todo é como se fosse de festa.”

“A cidade começava a mostrar os primeiros sinais. Arraial. Viu um bonde amarelo. Era o primeiro que se apresentava aos seus olhos. Não era tão grande como diziam. ENCRUZILHADA. Casa de gente pobre pela beira da linha, jaqueiras enormes, mulheres pelas portas das casas. E agora o Recife.”

“Tempos de carnaval, só falavam de uma coisa só: Toureiros, Vassourinhas, Pás-Douradas. — Toureiro ontem encheu a rua de cabo a rabo. Outro achava que o clube era o Pás-Douradas: — Veja o povo como fica doido com os Pás. Um cabra dos Toureiros se fez de besta no ensaio dos Vassourinhas e foi aquela desgraça. Quando chegaram na rua Larga, comeram o bicho na faca. Ninguém nem viu. Quando o “passo” passou, o bicho estava estendido.”

“O Carnaval vinha aí. Todo o ano, daquela rua saía o Paz e Amor com os seus homens e as suas mulheres numa alegria de doidos, saltando como bichos criados na fartura. Dois meses antes já anunciavam a música que exibiriam na cidade. O Paz e Amor esquecia os urubus, a catinga do curtume, os filhos magros, para cair no passo. O Carnaval era para aquela gente uma libertação. Podiam passar fome, podiam aguentar o diabo da vida, mas no Carnaval se espedaçavam de brincar. Com candeeiro na frente, bandeira solta ao vento, saíam para fora dos seus mocambos fedorentos para sacudir o corpo na vadiaçao mais animal deste mundo.”