Passarinho

Domingo. Detesto. Dia de ficar com a menina o dia todo, ver o marido o dia todo, melhor é dia de semana que não se tem de fazer de conta que se é uma família. Detestar é o verbo que me vem à boca todo o tempo. Domingo é tudo mais difícil. A casa continua se sujando, as roupas continuam se sujando, mas a menina quer brincar, a menina quer, a menina quer, a menina quer tudo. O marido não faz a barba, se aboleta na rede, no sofá. Parece que domingo é livre, mas é nada, a obrigação de fazer algo diferente, levar a menina no parque ou praia, almoçar em algum restaurante entupido de gente barulhenta e deseducada. Eu não pergunto, eu sei o que eu fiz para merecer isto, eu brinquei de boneca, é um mal, brinquei de casinha e pensava que a vida era brincar de casinha, um marido boneco, um carro rosa, tudo perfeito. A menina brinca de boneca, fazer o quê, é a mesma merda, a mesma repetição. Domingo. Marido acorda mais tarde e a menina acorda mais cedo, eu nem consigo pensar direito e levanto para enganar a menina com uma brincadeirinha e recolher a roupa do varal e pensar no que vai ser o café da manhã e o que vai ser no café da noite, o almoço já resolvido, é domingo, vou comer demais no meio do barulho.

Passarinho canta enquanto recolho a roupa. Detesto passarinho. Deve ser bom, ser passarinho, morre logo, dura pouco, não cuida de casa.

Útero

Tanta gente morre por besteira, só eu não. Queria um câncer fulminante de útero, de pâncreas, queria um ataque cardíaco fulminante, um raio que o parta, mas não, continuo aqui. Só não consigo é pular do prédio, fico imaginando o baque, a porrada, deve doer pra caralho, ainda não quero não. E foda-se quem achar que devo procurar “ajuda”, vou procurar porra nenhuma, não tem um psico-qualquer-coisa que tenha uma vidinha resolvida. Vai ver, é tudo complicado lá nas casas deles. Eu não quero ajuda, quero parar.

Fico pensando na menina, claro. Ficar sem mãe. Meu marido é zero, não sabe nada de casa, nada de cuidar da menina, nada de roupas. Ele tenta, mas homem é um zero e acabou. A menina vai ficar sendo cuidada por ele, é até bom, vai crescer menos angustiada com as exigências da mãe. Já sinto um câncer crescendo no meu útero. Tenho medo. Queria uma doença rápida e indolor.

Acho que é só a menina que me segura aqui. Penso na putinha com a qual meu marido vai se ajuntar depois que eu me esbagaçar na marquise do térreo. Homem que deixa de ter esposa, logo arruma uma mais nova e se ajunta. Poucos, pouquíssimos são como Ordep, maduros e solteiros. Homem precisa de uma mãe, uma mulher para ordenar a vida cotidiana. Meu marido já é um escroto, então depois que eu me for, expressão feia, aí é que o safado vai se espalhar. Problema, vai até esquecer da filha. A menina vai ter fome, vai ficar na escola até tarde esperando e nada, vai deixar de fazer as tarefas da escola, perder o aniversário das amigas, a roupa vai ficar puída, nunca que aquele inútil entrou em uma loja para comprar roupa da menina. Talvez tenha até comprado roupa para alguma quenga, mas nunca para a filha. Mas tem tanta gente que cresce assim, em “um lar desestruturado”, e supera e vira gente na vida. Eu tenho que pensar em mim e na varanda do apartamento.

Mas dói muito. O governo que não faz porra nenhuma pelo cidadão devia providenciar um remédio, um comprimido, que eliminasse a vida sossegadamente. Ficar livre da máquina de lavar roupa é o paraíso.

O que eu preciso para esquecer isso é de uma boa foda. Mas o esquecimento dura pouco. E aquele escritório de merda no hospital, dar bom dia para todos, uns hipócritas, uns incompetentes. Sou advogada, mas nunca quis me destacar em nada, nem nessa profissão, queria mesmo ficar apagadinha, e é assim, o departamento pessoal do hospital é foda, é muito trabalho, mas quase tudo rotineiro, daí sobre um pouco de tempo para pensar, eu lá queria ser advogada famosa e trabalhar vinte horas por dia, eu tenho hora para pegar minha filha na escola e tenho hora para levar no balé. Que não serve para nada, a menina é inábil como o pai, nunca vai ser bailarina, todas as meninas de todas as escolinhas de balé de todas as cidades nunca vão ser bailarinas. Perda de tempo. Dá pena ver a menina nas apresentações canhestras de final de ano. E as meninas jogadoras de futebol também nunca vão ser jogadoras famosas, tudo ilusão, vão casar com um safado e botar mais uma escrota de uma menina no mundo para casar e assim por diante e por diante.

Queria era sumir, mas tenho hora no médico, vai dar câncer o exame, certeza.

Limbo

Há cerca de vinte dias, trinta dias, deve ter ocorrido um grave acidente de automóvel. Leonardo e Isabel morreram naquele acidente ou, quem sabe, estão em estado crítico, coma, na UTI de um hospital, desenganados. Ou foram encontrados mortos naquele apartamento, um vazamento de gás, um incêndio, um veneno qualquer, um pacto suicida, uma vingança.

No presente momento, eles vagam no apartamento, não sabem que morreram, realizam as atividades cotidianas como se estivessem vivos. Não veem ninguém de fora, o mundo está silencioso, a comida chega na porta, mas não se vê quem a colocou ali. Eles não conseguem se afastar do edifício, uma névoa encobre tudo, o mundo lá fora parece que deixou de existir.

O limbo parece que vai ser eterno. Ou até que eles percebam que devem desapegar e partir. Ou até quando começarem a perceber fatos estranhos no apartamento, como se fantasmas habitassem o lugar. Serão os novos donos, os filhos já terão vendido o apartamento, eles passarão a conviver com os espectros dos vivos ou enfim vão se convencer que já passou da hora.

Sonho com Isabel

O sonho com Isabel. Foi um sonho dentro de outro sonho, muito estranho. Eu não era bem eu e Isabel não era bem Isabel, mas semelhantes. Outras vidas, outros universos, até melhores do que esse aqui.

Ele aportava em uma baía luminosa com muitos veleiros, água azul do mar, dia de sol. A cidade subia pelas colinas em volta da baía. Como era sonho, ele viu a baía lá de baixo, na chegada, no cais de madeira do porto, e quase ao mesmo tempo, percebia a baía vista de cima, os veleiros ancorados. Ele subiu as ladeiras da cidade correndo. Uma cidade como Granada, que não é perto do mar mas tem colinas, uma cidade como São Francisco, e menos como Olinda, que não tem uma baía. Uma cidade antiga, como as cidades portuguesas. Subia uma ladeira correndo sem sentir cansaço nem o peso do corpo, leve, leve. Uma moça subia pedalando e desistiu no meio da ladeira, desceu da bicicleta e empurrou, e ele seguiu correndo leve. Paralelepípedos. No topo de uma ladeira, escadarias como em Granada continuavam a subida. Ele subia ansioso, levava um pequeno pacote, um presente simples para ela.

A casa dela era lá em cima, em cima, uma rua quase plana, e paralela à baía lá em baixo. A casa dela era na esquina, ela morava no andar de cima de uma casa antiga, um apartamento pequeno; para chegar no primeiro pavimento havia uma escada externa com guarda-corpo de ferro trabalhado, tudo antigo. Ele notou que estava tudo fechado em cima, olhou na esquina, foi para lá e para cá, dobrou a esquina de novo e, quando voltou à rua principal, ela subia a escada, já ia pelo meio. Ela usava uma blusa vermelha colada, os peitos pequenos que ele conhecia bem, uma saia curta de jeans. Os cabelos estavam diferentes, não lisos, não os de sempre, e ele nem achou estranho, estavam ondulados. Ela sorriu, subia com uma amiga, acenou para que ele subisse, ele pulou degraus e foi entrando no apartamento com ela e a amiga, que ele não conhecia.

Ela abriu as janelas, o piso era de madeira escura, como o das casas de Olinda e Ouro Preto. Ele chegava de viagem, como um marinheiro, mas ele nunca fora marinheiro na vida, tampouco velejava na vida, sabia nada de barcos, sonho é assim. Falaram da viagem, ele entregou o presente, algo que trouxera de longe, não ficava claro o que era, um artesanato de uma ilha distante, um livro, quem sabe. Nada valioso, somente mostrar que a mantivera no pensamento. A amiga dela fez um comentário, dirigindo-se a ela, foi como “ele ganhou pontos com você”. E ela disse desse modo “ele não precisa ganhar pontos, ele já tem todos os pontos necessários”.

Daí, ela começou a cuidar da casa, arrumar alguns objetos, frutas, compras, não se sabe, e colocou roupas na máquina de lavar; os móveis e equipamentos estavam todos mais ou menos no cômodo principal, e havia ainda um quarto ou dois. A máquina ficava perto de uma prateleira de madeira antiga. Com um canivete suíço, ele gravou algumas palavras na parte de baixo da madeira antiga, sem que ela visse, em um momento no qual ela foi ao quarto. A frase, quem sabe o que diria, talvez “eu estive aqui”, ou algo mais romântico, algo de saudade.

Eles se despediram sem beijos, nada grandioso, um roçar de rostos, nariz. Ele foi para a casa dele, não era longe, ela ficou cuidando das coisas da casa. Então, ele acordou na casa dele e percebeu que fora um sonho. Mas, ele sabia, era verdade, ela existia e morava ali perto na casa do sonho e eles moravam naquela cidade do sonho. Ele telefonou para ela e contou o sonho, ela gostou do sonho dele, e ele contou que, absurdo, no sonho, havia gravado palavras na madeira antiga que havia por trás da máquina de lavar roupa, ora ele nunca faria isso acordado, riscar uma madeira. Ao telefone ainda, ela foi até a máquina de lavar, puxou-a para a frente e encontrou ali atrás as palavras que ele em sonho rabiscara.

Então, ele acordou do sonho e se viu na vida real, essa aqui sem graça e cinza, sem veleiros, sem baía, sem blusa vermelha, presentes, madeira, nada.

Exames

Dia de fazer exames, ele havia avisado ao chefe. Levantou às seis, tomou café frugal, limpou e organizou a mesa de vidro de trabalhos de arte. Isso deu ânimo e nova orientação a sua vida cinza. Trabalhou em seu caderno de desenhos e anotações, guache. Caminhou até o laboratório, sala de espera, foi chamado, assinou autorizações, exame de sangue. A moça furou a artéria grande do braço direito e colheu oito tubos de sangue, de um vermelho muito tendente ao negro. A moça mandou que ele fosse ao banheiro e colhesse a urina. O banheiro estava fechado, ele esperou na frente, imaginava que alguém colhia algo. Demorou, saiu um velho e fechou a porta, Leo abriu a porta e entrou, o velho havia cagado e o banheiro estava pútrido, bosta de velho é pior. É nada, toda bosta é nojenta. Saboreando involuntariamente a podridão, mijou no pote e depois passou o mijo do pote para um tubo de ensaio e tampou. Lavou as mãos, saiu e entregou o tubo à moça e xau. Caminhou para o outro exame. No caminho, acertou o seguro do carro da esposa com a moça da seguradora. Tudo por mensagens, a moça foi que entrou em contato com ele. No caminho, a cena deu-lhe imensa pena do rapaz. Um jovem casal, a mulher com a criança no braço, chorava a criança, o choro chato teimoso das crianças mimadas, o rapaz enfiava como podia malas e maletas e malinhas de bebê e o carrinho do bebê no porta-malas do veículo, no banco de trás, onde coubesse. Coitado do rapaz, teve uma pena danada do rapaz. Mulher não, não teve pena da moça, mulher gosta disso, de brincar de casinha, de ter filho, de mexer em bosta de criança, de cheirar dobrinha de criança. Homem é que se fode. Homem não tem nada a ver com a maternidade. O cara jovem ali perdendo a vida cuidando de malinhas de criança. Continuou o caminho. O outro exame, ultrassonografia, chegou na clínica por volta de dez e pouco, apresentou os documentos na recepção, assinou três vias de papéis que talvez até afirmasse que ele venderia o fígado e os rins e que se morresse em decorrência do exame, a culpa era dele mesmo que ali havia ido. Ninguém lê essas autorizações e se alguém lesse, teria que consultar um advogado a cada linha. Sentou-se e esperou durante mais de quatro horas para ser chamado. Ninguém avisou mas ele já sabia que era necessário tomar água algumas vezes para encher a bexiga. Não tomou muita água, sabia que ia demorar e não queria estoura r a própria bexiga, isso é fatal. A moça perguntou “a bexiga está cheia?”, ele mentiu “sim”, não estava tão cheia, meio cheia. Foi chamado, a moça mandou deitar e exibir o bucho, levantou a camisa e abriu o primeiro botão da calça. A senhora doutora magnificente médica entrou, espalhou o lubrificante e passou o visor ultrassônico pelo bucho dele. Mostrou o fígado, os rins, ele não viu nada, claro, manchas em uma tela de qualidade duvidosa, quantos pixels, falou que bexiga, próstata, rins e fígado, tudo ok, mostrou a aorta, dava medo, dava para ver um tubo enorme em corte transversal e uma coisinhas coladas na parede da tal aorta, pouquinho, uma sujeirinha, a médica falou “vá a um cardiologista”, “ok, doutora”, respondeu, e ela “vida saudável, exercícios, comida saudável, etc, cuidado&r dquo;. A médica terminou, disse “boa sorte, desculpe a demora”, foi-se. A moça mandou-o ao banheiro e xau. Limpou-se o que foi possível, a nojenta gosma lubrificante grudou na roupa, nos pelos, na barriga. Caminhou esgotado da vida de volta para casa.

Hinos

Na Folha de São Paulo, Sérgio Rodrigues escreveu sobre hinos, Nacional, da Bandeira, etc. Recordo que na minha escola se cantava vez ou outra o Hino Nacional, o da Bandeira no dia dela, e o hino da escola do qual não tenho a mínima ideia de quem o compôs. A escola particular se chamava Instituto Domingos Sávio. Eu não sabia quem era Domingos Sávio, mas o hino rezava assim: “Domingos Sávio tua vida imitamos, à Pátria e à Igreja servimos e amamos”. Não sei se havia mais versos do que estes. Nas ocasiões de hinos e de hasteamento da bandeira, todos os alunos ficavam perfilados no pátio de terra na frente da escola. O prédio antigo, tombado, ainda hoje existe, tem um muro baixo com grades complementando, se vê de fora, as pessoas paravam para ver as crianças perfiladas. Eu não entendia o Hino Nacional nem sabia a letra toda. Preferia o Hino da Independência. Tive uma amiga que modificava o Hino Nacional com nomes de frutas e verduras, mas não decorei essa versão. A minha amiga estudava em uma escola conceituada, difícil ser matriculado lá, uma escola administrada pela Marinha. Daí, eles aprendiam o “Cisne Branco”, uma música que considero muito bonita e que nunca aprendi a cantar totalmente. Minha amiga sabia o “Cisne Branco” todinho. Havia, também, uma piadinha boba. Alguém dizia que gostava do hino “Virudum”. Que “Virudum” é esse? O “Virudum” ora, aquele “Virudum Ipiranga às margens plácidas…”. Mas essa questão de hinos deve ser como a das Constituições dos países: todos são mais ou menos complicados, todos mais ou menos patrióticos, bobos e nacionalistas e sentimentais, e poderiam ser feitas análises comparadas entre eles. O nosso não seria, talvez, o mais bobão e complicado.
Ainda sobre o Instituto Domingos Sávio, a diretora chamava-se Dona Auristela, havia uma professora rigorosa, Tia Iracilda, e a professora mais bonita era a de inglês na terceira série, Tia Ana. No início, a menina mais bonita se chamava Nadiege. Depois, conheci a irmã mais velha dela, Niégile, que passou a ser a mais bonita e a mais inatingível. Muito tempo depois, na quinta série, a musa dos meninos passou a ser Maria Júlia.

Bela e Bala

Os filhos pequenos de Dona Esailda. Ela recebia a ajuda de uma empregada, que se chamava Bela. Na época, não se chamava empregada de secretária ou outros eufemismos. Negra, peitões fartos, quase sempre usava um lenço amarrando o pixaim. Ninguém se recorda qual era o nome de Bela. Bela teve uma filha e parece que o parto foi difícil. Assim, a menina foi batizada de Maria do Bomparto. Todos a chamavam de Bomparto. Bomparto muita vez ia com Bela para a casa de Dona Esailda. Era uma menina magrela, alegre, comprida, de uma cor café com leite e cabelo sarará, muito mais clara que a mãe. Nunca se conheceu na casa o pai de Bomparto. O marido de Dona Esailda, Seu Antonio, gostava de ler jornais. O entregador de jornais se chamava Bala. Ninguém sabe qual era o nome de Bala. Bala entregava os jornais todos os dias, mas só recebia o pagamento no final de semana. Era um cachaceiro, difícil ver Bala sóbrio, sem ter tomado umas. Faltavam-lhe vários dentes. Seu Antonio gostava de brincar com Bela dizendo que ela ia casar com Bala, ela só “deus me livre”. Daria um casal de nomes curiosos, é evidente, Bala e Bela. Os filhos pequenos de Dona Esailda eram fresquentos para comer comida de panela. Por isso, Bela dava o almoço às crianças, fazendo aquilo que chamavam de “bolão”: um bolinho arredondado pela mão de Bela, contendo feijão, arroz, carne e farinha para dar consistência ao bolão, e geralmente umedecido no molho da carne. Os filhos de Esailda comiam assim, abriam a boca e Bela colocava o bolão lá dentro. Demorou anos para que as crianças aprendessem a usar talheres. Talvez não tenham aprendido até hoje.

Nomes

Nomes da minha infância:
Minha avó Lourdes, Maria de Lourdes, religiosa, católica, pianista de cinema em cidade do interior. Eu a chamava Vovó de Duda porque Duda era o meu tio, Eduardo, Duda. Minha avó Lailda, nome complicado, com cheiro de naftalina, religiosa, espírita, via espíritos malignos e benignos pelos cantos das casas dos outros. Eu a chamava Vovó de Dedé porque Dedé era o meu tio, Zé, Zé Luís, tio Zé. Meu avô Rafael, não conheci, morreu um mês antes que eu começasse a existir, acidente vascular cerebral. Na foto, parecia um homem bonito. Pianista de cinema. Meu avô Sebastião, todos o chamavam de Seba. Usava paletó, chapéu e uma pasta pesada, preta, de formato triangular, no corte transversal. Colecionava revistas Seleções do Readers Digest. Na casa dele havia um birô com um vidro sobre a madeira do tampo e, debaixo do vidro, fotos e recortes. Morreu de câncer de próstata. Ninguém usava a palavra maldita: câncer, CÂNCER. Era proibido. Tomou um remédio maluco feito por charlatães, um roubo, um esperdício de dinheiro e esperança, uma bosta verde chamada VK-3. Acho que matava mais rápido os pacientes de câncer. Definhou lá em casa. Saiu para morrer no Hospital Tricentenário.

Tudo entrempado

A metrópole é um prédio entrempado no outro. Janela com janela, varanda com varanda. Os vizinhos do outro lado, dois andares abaixo, costumavam jantar na varanda, finais de semana, com amigos e vinhos. Eram jantares animados, até com gargalhadas. A dona da casa, uma loura vislumbrosa, bem mais de quarenta, devia ser cinquenta. Leo mesmo gostava de bispar a varanda lá embaixo, escondido na área de serviço, lâmpada apagada, na área de serviço a janela é alta, mais discreta, só o nariz de Leo e os olhinhos poderiam acaso ser vistos. É provável que outros vizinhos fossem menos discretos na apreciação da felicidade alheia: taparam a varanda com persianas. Persianas que descem apenas nas noites de jantares. Noites de Leo menos divertidas, sextas e sábados.

Dicionário do suicídio (em construção) 3

Dicionário do suicídio (em construção)
 
Letra A
 
Arma de fogo: Método caseiro para deixar de viver. A melhor opção para o suicídio, exceto por uma morte controlada pela medicina. Como não é permitido que alguém procure um médico com a intenção de deixar de viver, restam os métodos caseiros. A arma de fogo tem uma grande porcentagem de sucesso, é um método que causa uma morte rápida e quase imediata e, importante, supõe-se que não deve doer muito ou, ao menos, seria uma dor forte e curta. A maior dificuldade é conseguir legalmente uma arma. O método tem o inconveniente de provocar certa sujeira. Não é bom dar um tiro na cabeça sentado na cama visto que provavelmente se vai inutilizar o colchão, encharcado de sangue. Se o suicida é casado, vai deixar mais um problema para a futura viúva. O melhor lugar seria, talvez, o box do banheiro, visto que o sangue poderia ser lavado com mais facilidade. Diz-se que o melhor lugar do corpo para o tiro seria a cabeça. Eu não arriscaria o coração, mais fácil de errar e de sobreviver. Diz-se, também, que, para o tiro na cabeça, é melhor colocar o cano da arma de fogo na boca para evitar que a arma desvie e o tiro atinja apenas parcialmente o cérebro.
 
Letra C
 
Carta: Embora muitos suicidas não o façam, é aconselhável deixar uma carta, ao menos para os familiares mais próximos. Mesmo que eles continuem a não entender e não aprovar o gesto extremo, terão um pouco de conforto com algumas palavras deixadas pelo finado.
 
Comprimidos: Método inseguro, com possibilidade de ser doloroso. A dificuldade de conseguir comprimidos eficazes também deve ser considerada.
 
Coragem: Qualidade necessária ao suicida. Há que ter coragem para executar o plano. “Um dia vou tomar coragem e” é um pensamento recorrente aos suicidas.
 
Letra D
 
Direito de morrer: Ausente da Constituição, o direito à morte, ou direito de morrer, é um direito fundamental do ser humano. A Constituição cita o “direito à vida” em três artigos e nada sobre o direito à morte. Todos têm o direito inalienável de não querer continuar no mundo.
 
Dívidas: Um bom motivo para cometer suicídio. Mortos não têm dívidas, é a libertação total. Adeus CPF, boletos, cartões, contas, despesas, saldo negativo, imposto de renda, multas.
 
Letra E
 
Edifício: Deve ser muitíssimo alto. Método caseiro de suicídio, geralmente eficaz. Entretanto, o suicida não deve se arriscar escolhendo edifícios de poucos andares. Muita gente sobrevive a quedas de quatro, sete, oito andares. É aconselhável verificar se não há toldos ou árvores lá embaixo que poderiam atrapalhar o plano. É imprescindível certificar-se de que o alvo esteja livre da circulação de pessoas, o suicida não deveria provocar a morte de terceiros. Deve-se considerar que este método favorece as fotografias dos curiosos .
 
Emma Bovary: Personagem do livro Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Sofre uma morte dolorosa depois de comer um veneno que surrupia da farmácia que fica quase em frente a sua casa.
 
Enforcamento: Não é um bom método caseiro de morrer, esse de colocar a corda no pescoço e ficar pendurado. Geralmente, apresenta muitas falhas. A corda tem que ser forte, o lugar de se pendurar fortíssimo. A morte é lenta, esse o principal motivo para evitar o método. Diz-se que demora uns vinte minutos para morrer dessa forma. Além da demora para morrer, alguém pode entrar e salvar o indivíduo. Alguns enforcados também se cagam e se mijam, muito feio.
 
Enrique Vila-Matas: Escritor que publicou um livro intitulado Suicídios exemplares no qual ninguém se mata de verdade.
 
Letra F
 
Facebook: Inimigo dos suicidas. Nos tempos atuais, se um cidadão escreve no Facebook algo que dê a entender a vontade do suicídio, em minutos terá na sua porta um carro da polícia para evitar a tentativa. Se alguém quer realmente se matar, não deve dar nenhum indício, especialmente no Facebook.
 
Letra K
 
Kawabata: Escritor e suicida famoso. Tópico em desenvolvimento.
 
Letra M
 
Madalena: Personagem do livro São Bernardo, de Graciliano Ramos. Mata-se com veneno, deve ter sofrido, contudo o marido não presencia seus momentos derradeiros, só descobre o corpo no dia seguinte. O autor fala em espuma na boca e vidro quebrado pelo chão.
 
Mishima: Escritor e suicida famoso. Tópico em desenvolvimento.
 
Letra O
 
Ônibus: Método desaconselhável. Doloroso e com muitas probabilidades de não se atingir o objetivo.
 
Oração: Embora sem utilidade prática – nenhum deus responde aos apelos humanos – o suicida também reza. Muita vez, é esta a oração dos suicidas: “Por favor, deus, me tire daqui deste pedaço de rocha solto no espaço, hoje, agora, de preferência sem doer”. Todavia, deus prossegue silencioso.
 
Letra S
 
Sylvia Plath: Escritora e suicida famosa. Colocou os filhos no quarto e tapou as frestas da porta. Na cozinha, abriu o forno, ligou o gás, colocou uma toalha e deitou a cabeça. Era inverno. As crianças foram encontradas um dia depois, com frio e fome.
 
Letra T
 
Tentativa: É uma falha do suicida. Suicidas não devem fazer tentativas. Devem cuidar para que a ação tenha sucesso de primeira. Tentativas frustradas conduzem a uma vida pior, aleijado, cego, doente, paralítico, sem rins, tronxo. Se sair com saúde de uma tentativa, o suicida passará a ser vigiado o resto da vida. Deve-se cuidar para que o ato não se torne uma tentativa. Fazer a coisa certa ao menos uma vez na vida.
 
Letra V
 
Veneno: Método inseguro e doloroso, desaconselhável, a chance de sobrevivência é alta e pode deixar muitas sequelas no sobrevivente.
 
Vergonha: Morto tem vergonha? Contudo, o suicida deve decidir se terá vergonha de seu corpo morto. Muito mais agora, no mundo das fotografias e filmagens diuturnas. O suicida discreto não desejará que seu corpo, sangue, tripas seja fotografado pelos inevitáveis curiosos, e as fotos compartilhadas para horror e delícia da malta. O suicida discreto deve estar atento a este detalhe ao escolher onde tombará seu corpo morto.