Do que eu falo quando falo sobre pedalar

Do que eu falo quando falo sobre pedalar. Do que eu falo quando falo sobre bicicletas. Eu pensava sobre isso hoje de manhã, enquanto pedalava. Ou seja, eu pensava sobre o livro de Murakami, que não li, ainda: “Do que eu falo quando falo de corrida”. Quando eu saio para pedalar solo, eu penso. Especialmente porque eu saio para pedalar quando ainda está escuro, vai amanhecer. Eu acordo às quatro e trinta e cinco e às vezes é difícil levantar, mas levanto. Visto-me e desço e pego a bicicleta e saio. Diz a ciência que aqui está amanhecendo às cinco e vinte e quatro. A Terra gira e no momento estamos girando para amanheceres mais tardios. Em junho, julho, agosto estaremos na faixa das cinco e trinta e pouco. Em novembro, chegaremos a quatro e cinquenta. Agora, em março, está escuro às cinco, a hora em que saio. Quando chego ao centro da cidade, aos rios que cortam a cidade, já começa a clarear o céu. Se o dia amanhece com muitas nuvens, o amanhecer é mais bonito, mais laranja e cor de fogo pois as nuvens, parece, funcionam como prisma e decompõem a luz do sol assim. Dá belas fotos. Eu faço fotos com minha câmera velha no centro, do rio, das pontes, e quando chego na praia, fotos do mar com o sol arrebentando. Quando eu pedalo assim de manhãzinha, penso na vida, penso em fazer novas viagens de bicicleta, que falta de fazer viagens de bicicleta, a última em setembro passado. Penso na vida e na desvida, penso nos livros que estou lendo, evito pensar em trabalho. Pedalo tão cedo por conta de condicionantes, coisas, fatos, questões que não escolhemos, ou sobre as quais não temos poder de decidir, e este é o tempo que me sobra, todos os dias.

Do nada

No jornal da tevê. Um acidente de carro, o motorista morreu, o carro esbagaçado. O motorista era um sub-famoso, desconhecido para mim. O repórter, ao vivo, foi entrevistar um curioso que estava fotografando o carro: “Você soube do acidente e veio aqui ver?” E o rapaz: “Eu cheguei aqui do nada, vi esse carro e quis registrar.” O que me assustou foi “eu cheguei aqui do nada”. Pensei se o rapaz teria vindo do futuro, dos domínios inferiores, ou do nada absoluto mesmo.

Tudo que eu mais ou menos sei sobre Martin

Tudo isso são minhas impressões sobre Martin. Ele é meu vizinho, ele não me contou nada, eu o observo e acompanho o trabalho dele. Ela é ciclista e faz vídeos. Martin morava em Rotterdam, hoje mora aqui em Tilburg. Ele era designer de alguma coisa, não sei, de moda, de tecidos, de roupa, sei que ele tinha seu próprio negócio. De repente, deu a doida e ele decidiu tirar uns três meses sem trabalhar. Nesse tempo sabático, ele pedalava e fazia vídeos das pedaladas. Mas os três meses já se tornaram anos. Parece que Martin consultou uma empresa de bicicletas para saber se eles tinham uma bicicleta elétrica para a companheira dele, Leona, experimentar. A empresa não fazia bicicleta elétrica, mas ofereceu uma bicicleta de estrada para que ele testasse. Daí, não sei como, surgiu uma parceria com a empresa que ainda está valendo. Acho que ele ganha dinheiro com canal de vídeos, e com publicidade de coisas ligadas ao ciclismo. Publicidade de bicicletas, roupas de ciclismo, equipamentos para ciclismo. Martin morava com Leona em um apartamento de Rotterdam e ambos se mudaram para uma casa em Tilburg; acho que compraram a casa. Porém, pouco depois se separaram. Leona não é mais vista aqui. Acho que Martin sofre de depressão – não que isso tenha relação direta com a separação. Algum tempo depois do “sumiço” de Leona, Martin ficou recolhido em casa algumas semanas. Não fez vídeos e pouco saiu de bicicleta. Ele disse depois que não estava bem física e mentalmente, mas não acrescentou outras informações e nunca mais falou em Leona. Em outro momento, durante uma viagem de bicicleta por um país africano, Martin se separou do grupo de amigos e voltou só para a capital. Disse que a aventura não estava sendo do jeito que ele gostava, que não estava bem e voltou. Martin tem um grupo de amigos que pedala junto. Leona fazia parte desse grupo mas ela era nitidamente um pouco inferior no desempenho. O grupo de amigos pedala com a mesma marca de bicicletas que apoia o trabalho de Martin. Não sei se ele consegue bicicletas de graça para todos ou se os integrantes compram as bicicletas. Seria um condicionante do grupo ter a mesma bicicleta, talvez. Não sei como Martin conseguiu tantos apoios ou patrocínios. Os principais são da marca de bicicletas e de um marca de roupas. Deve ter sido com trabalho duro e constante, talvez um pouco de sorte. Sempre é bom sorte. Os vídeos dele não são assim super-especiais. São bons. Martin não tem uma quantidade significativa de seguidores, ele permanece na casa dos milhares e considero significativo o milhão – para investimentos, quero dizer. Não sei como ele consegue pagar as contas, isso é um assunto que sempre me interessa nas pessoas que vivem vidas menos burocráticas. Já vi gente que tinha cinco patrocinadores e de repente viram somente dois ou três. Na crise, a primeira coisa que as empresas cortam, patrocínios. Eu mesmo pago todas as minhas aventuras de bicicleta, ninguém nunca me deu um alfinete. Eu pedi, mas não deram, as empresas. Como eu disse, e os boletos? Uma viagem patrocinada aqui, uma publicidade ali, um produto recebido aqui, isso não paga as contas mensais. Sei lá. Mas tem gente que vive de uma mistura de fontes de recursos: canal de vídeo, apoiadores individuais, empresas. Volto a falar de Leona: ela desapareceu e não se fala mais dela. Ela existe apenas nos vídeos antigos. Posso estar influenciado pelo pouco que sei hoje, a posteriori, mas me parece que Leona nunca estava completamente feliz, ou completamente dentro das aventuras de bicicleta, algo parecia sempre estar desagradando a ela. São esgares, são sinais no rosto, sorrisos forçados, respostas enviesadas. De todo modo, a dedicação absoluta de Martin ao mundo do ciclismo, aos amigos, aos vídeos, o ciclismo forte que ele pratica, isso deve ter afastado Leona. Ela não era tão fã assim das bicicletas. Recordo uma vez, logo que eles se mudaram para a nova casa de Tilburg, primeiros dias, acho, se não o primeiro dia lá. Martin saiu para um pedal curto, e para filmar, e Leona ficou na casa, limpando. Mesmo sendo um pedal curto, uma hora e pouco, acho que ela não gostou nada disso. Ele voltou, ela estava varrendo uma sala com uma cara fechada, claro. Bom, isso é mais ou menos o que eu sei sobre Martin. Ele é um cara que admiro, conseguir viver de ciclismo e de vídeos – mas isso deve ser bem difícil. Se eu souber mais alguma coisa, acrescento aqui.

P.S.: O relacionamento entre Martin e Leona está documentado em vídeos. Nesta arqueologia da vida de Martin – que estou fazendo – procuro detalhes que revelem, especialmente sobre Leona, pois ela me intriga. A primeira vez em que Leona aparece em um vídeo de Martin é curiosa: eles não moravam juntos e talvez não fossem namorados. Estavam estreitando relações. Martin avisa que aquele vídeo não vai ser sobre ciclismo, ele vai patinar no gelo. Depois da introdução, ele desce e abre a porta do prédio e Leona está lá, meio envergonhada, não sei, segurando a bolsa dos patins. Eles vão até um canal congelado de Rotterdam e patinam no gelo, no frio intenso; depois, um café. Essa vida a dois, interrompida, registrada, me fez recordar o filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”. Talvez, o filme ao contrário pois Martin e Leona não podem esquecer as cenas que viveram já que elas continuam acontecendo nos vídeos. (É óbvio que os vídeos podem ser apagados, exterminados, mas ninguém o fez até agora). O começo, o meio e o fim do caso está lá – o fim apenas representado pela ausência dela a partir da mudança de Rotterdam para Tilburg. Acho que Martin exigia demais de Leona e, de certo modo, ela sentia que ele preferia o grupo de amigos – exímios ciclistas – do que ela. Nem Leona subiu ao nível de Martin, nem Martin reduziu seu nível para ficar com ela. Acerca do filme “Brilho eterno”, é curioso que Martin faz um anjo na neve, como acontece no filme.

.

.

.

.

Deus ex-machina

“Diários incompletos”, de Miguel Heraldo, Editora Todavida, tradução de Herculano Quintanilha, 587 páginas, trecho:

Encontrei a seguinte citação atribuída a Clarice Lispector no jornalzinho da vila: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro”. Não sei se é dela mesmo, teria que pesquisar; deve ser. O jornalzinho é uma iniciativa meritória, sem fins lucrativos, com despesas que superam qualquer receita, projeto utópico de um poeta local. Não o conheço ainda, mas pretendo.

Estou lendo Dante pela primeira vez na vida, agora na maturidade: nunca é tarde. Imperdível.

Aqui nesta “novela”, se ao final pudermos denominá-la assim, não tem, não haverá deus ex-machina. Advirto porque este recurso atrai os escritores – mesmo aqueles que almejam apenas a fidedignidade, como eu. Exemplo: um romance quase perfeito é “Lolita”, de Vladimir Nabokov. A falha é o deus ex-machina: um tio de Humbert Humbert que lhe deixa uma pequena herança, com a qual o rapaz pode viver despreocupadamente. Resolvida a questão financeira, tudo fica mais fácil. Faz muito tempo que li “Anna Kariênina”, de Liev Tolstói, mas me recordo vagamente de que Vronski e Anna passam apertos de grana, mas continuam gastando e gastando. Não bate. Soa fantástico, soa fácil demais.

Aqui, não. Aqui, se vivo essa situação idílica – para alguns – é porque fiz planejamento e, ademais, trabalho bastante. A facilidade é trabalhar em casa, algo que muita gente consegue, então não tem nada de ex-machina.

Céu vermelho

“Diários incompletos”, de Miguel Heraldo, Editora Todavida, tradução de Herculano Quintanilha, trecho:

“Ontem pedalei até o escritório onde não pisava há setecentos dias – trabalho em casa. Apesar da nossa selvageria, impressiona que existe ciclovia desde a porta do edifício em que moro até a porta do edifício do escritório. A assim chamada Rua dos Estudantes – que é apenas uma travessa estreita entre duas ruas importantes – teve o piso refeito para melhor atender pedestres e ciclistas. Depois de prender a bicicleta no bicicletário do edifício, fui à portaria e o meu cartão de acesso ainda funcionava. A única reunião presencial em dois anos. O trabalho flui melhor em casa. A volta para casa fiz por outras ciclovias, para variar, até juntar naquela mais direta até a porta de casa.

O sol está nascendo por volta das cinco e vinte e quatro. Hoje, saí de casa com a bicicleta às cinco. Na avenida que vai reta na direção leste, no leste, céu vermelho, incialmente, depois alaranjado e amarelado. Belo, belo. Vontade de fotografar, sempre dá, mas, para quê, basta ver, a fotografia é redutora. No porto da cidade, céu cada vez mais claro mas ainda sem sol. Fui para o sul e voltei para o norte com o mar a minha direita, e o sol laranja, enorme, pegando fogo, mil volts de potência, subiu, estava a bola inteira pouquinho acima do horizonte. Perfeito.”

Amarelo, nuvens, e até rosa

“Diários incompletos”, de Miguel Heraldo, Editora Todavida, tradução de Herculano Quintanilha, trecho:

Cinco horas da manhã, o céu estava belíssimo; choveu forte durante a noite, amanheceu nublado, iniciei a pedalada, não chovia, ruas molhadas, o Sol lutava para sair e logo havia azul, amarelo, nuvens, e até rosa. Não fotografei, a fotografia é pobre. No cais, o Sol amarelo pouco acima do horizonte, entre nuvens. Ao norte, chuva distante; ao sul, nuvens sem chuva, uma hora de bicicleta sem chuva, nuvens e Sol sobre a cidade.

Peste, Bolívar, Babalorixá

“Diários incompletos”, de Miguel Heraldo, Editora Todavida, tradução de Herculano Quintanilha, trecho:

Bicicleta, cinco da manhã, saímos e logo veio chuva, paramos em marquise próxima de casa, chuva ficou fraquinha, partimos, foi passando, ruas molhadas, sem chuva; nos locais de testes para saber quem está contaminado com a peste, filas; passou a temporada das mangas, há poucas pelo chão, há muitas castanholas; os sem-teto no entorno da Praça da República, abrigos de plástico preto, dormem até na entrada do Teatro de Santa Isabel, abrigados de eventuais chuvas; no Marco Zero, pequeno grupo de formandos fazia fotos, na Rua do Bom Jesus, antiga dos Judeus, outro pequeno grupo de formandos a caráter se fotografava, dia nublado, ruim para fotos, o sol tentava sair entre as nuvens no horizonte e não conseguia; Rua da Aurora e Cruz Cabugá, contorno do Monumento a Simón Bolívar –a cidade gosta de referências a Bolívar, San Martín e Abreu e Lima – depois Clube das Pás, e o Centro de Umbanda do Babalorixá Jadson das Almas; no Canal do Arruda, tem sem-teto começando a fazer barraco de pano e morar, e perto de casa o chuvisco recomeçou e a gente pensou e disse: a nuvem ficou parada aqui em cima do bairro, seis da manhã, chegamos, vinte km.

Frei Caneca

Trecho de “Diários incompletos”, de Miguel Heraldo, Editora Todavida, tradução de Herculano Quintanilha:

Passei ao lado do monumento a Frei Caneca, em frente a um resto de muro que, parece, era ligado ao Forte das Cinco Pontas. Frei Caneca foi arcabuzado em 13 de janeiro de 1825 em consequência de sua participação na Confederação do Equador, movimento republicano e separatista, um desdobramento da Revolução Pernambucana de 1817. Caneca participou dos dois movimentos. Daqui a três anos faz duzentos anos da morte de Frei Caneca. Conta-se que ele ia ser enforcado, ali mesmo junto ao Forte, mas três carrascos se recusaram a executar a sentença. Então, um batalhão do exército executou o arcabuzamento. O corpo de Frei Caneca foi deixado em frente à igreja de Nossa Senhora do Carmo. Caneca foi enterrado por religiosos, mas não se sabe onde é o seu túmulo.

Forte das Cinco Pontas, mas que só tem quatro.

A cidade do futuro que pegou o caminho errado

Trecho de “Diários incompletos”, de Miguel Heraldo, Editora Todavida, tradução de Herculano Quintanilha:

03.11.1971

Recife, a cidade do futuro que pegou o caminho errado. Hoje de manhã, pedalando pelo centro do Recife, passamos pela Ponte Giratória, todo mundo chama assim. Mas a ponte não gira, seu nome não é ponte giratória, tampouco ela é a antiga ponte giratória. A lenda recifense diz que a ponte giratória foi “fixada” e não gira mais. De fato, a antiga ponte giratória foi desmontada e construída essa, a atual, a “nova”.

Recife já teve ponte giratória, teve bonde, teve zepelim ligando direto com a Alemanha, teve ônibus elétrico. Era a cidade do futuro. Daí que em uma bifurcação, Recife entrou na via errada, não a do futuro, entrou na via do passado, da degradação e da miséria. Acabou ponte, acabou bonde, acabou ônibus elétrico. Recife, a cidade da miséria e do passado da cana, está cheia de miseráveis morando em abrigos improvisados com plásticos pretos bem ali junto do Teatro Santa Isabel e do Palácio do Campo das Princesas e do Tribunal de Justiça, aos pés bem calçados e engraxados do governador e dos juízes engravatados.

Sobre livros, de Miguel Heraldo para Godofredo Dantas

14 de maio de 1911.

E aí, Godô? Beleza? Estou de férias… Pedal nas praias do Caribe Brasileiro (Pernambuco e Alagoas).

A continuação da Aia, Atwood, não me interessa ler, acho o primeiro livro completo – aquele parece um caça-níqueis. Gosto de Feltrin – e nem suporto mais a outra, Lubrano, muito infantil, criançola. Não esperava que Feltrin fosse erudita mas acho que – no geral – ela lê rápido demais, por conta da necessidade de comentar, e perde algo da leitura. No caso da B, acho que ela não compreendeu o contexto: o AT é um documento jurídico-teológico que pretende fundamentar o direito do povo escolhido àquela terra. Especificamente, quando ela leu Samuel, ela não percebeu que Davi era um chefe de bando, um miliciano, que oferecia proteção aos proprietários de terras e rebanhos, e ai de quem não pagasse. Mas como disse gosto muito dela, madura, equilibrada.

Lolita é um romance quase perfeito – quase, porque VN abusa do deus ex-machina. Mas a cada leitura o leitor descobre novas expressões, ironias, safadezas do autor. Nesta nova leitura, percebi que Humbert Humbert é um Caliban – e logo depois da minha descoberta, ele, HH, se refere a Lolita como Miranda! Deixei passar isso nas outras vezes.

Evito comprar livros de papel, atualmente, e quero diminuir a quantidade que tenho aqui: quero, um dia, mudar para um estúdio (25, 30 m2) e terei que me livrar de uma imensa quantidade de objetos. Levar somente uma dúzia de livros mais importantes…

Som e fúria, Shakespeare, Macbeth:

Life’s but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more. It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.

Foz do rio Una