O País das Neves, Yasunari Kawabata, 1935

O País das Neves, Yasunari Kawabata, 1935, 160 páginas, tradução de Neide Hissae Nagae.

Estranheza, tristeza, solidão, incompreensão mútua, arestas, melancolia, subentendidos. São as impressões, os sentimentos que este romance de Kawabata passa ao leitor. Obra-prima. Foi necessário ler duas vezes para compreender um pouco mais o mistério e a beleza desse livro.

Considere, leitor, que existe uma grande distância cultural e temporal entre nós e o mundo retratado por Kawabata. Mesmo assim, a tristeza e melancolia deste livro conseguem nos tantalizar.

O enredo é simples e pode ser simplesmente resumido: Shimamura visita três vezes uma vila no “país das neves” pois lá conheceu uma mulher, uma gueixa que o atraiu fortemente. O relacionamento não tem futuro e ambos sabem disso.

Cabe destacar que a gueixa não é uma prostituta nos moldes ocidentais: ela é uma mulher que foi educada para divertir e entreter os homens, aprendeu a conversar, tocar, cantar e dançar, vestir-se, maquiar-se, uma maquiagem pesadíssima, quase uma máscara. Os favores sexuais podem estar incluídos ou não na atividade da gueixa. A instituição gueixa é algo que não compreendemos inteiramente. Diz-se que era costume aceito no Japão que os homens deveriam “respeitar” as esposas e se divertir com as gueixas. Complicado.

O essencial da novela de Kawabata é que existe uma atração fortíssima entre Shimamura – casado e com filhos – e Komako, a gueixa. Todavia, da parte de Komako parece haver amor, e da parte de Shimamura os sentimentos são mais diversos, atração, repulsa, afeto. No meio do relacionamento entre os dois, há Yoko, uma misteriosa moça da vila que atrai Shimamura pela beleza e pela voz.

Shimamura é um homem de boa situação financeira que parece ser um observador da humanidade, das mulheres, mais do que um participante.

Destaco que “parecer” é verbo que surge constantemente na novela. O autor mostra que não há certeza nas parecenças das coisas, das atitudes, dos sentimentos. Tudo parece.

Este é um livro complexo, repleto de nuances, de situações entrevistas, de sentimentos constrangidos; uma novela sem esperança, triste, dolorosa, intensa.

A seguir, resumo da estranha história de Shimamura, Komako e Yoko:

Shimamura, no trem para o País das Neves, observa a bela jovem Yoko. Shimamura vai ao reencontro de uma mulher, e Yoko acompanha um rapaz doente. Shimamura vai para uma hospedaria de águas termais. Descobre que o rapaz doente é filho da professora de música. A mulher que Shimamura vai encontrar mora na casa da professora. A mulher, sem nome, estava na estação mas Shimamura não a reconheceu.

A mulher foi visitá-lo na hospedaria. A barra do quimono dela arrasta no chão, o que significa que agora ela é uma gueixa (na visita anterior dele, ela não era ainda). Na descrição da mulher, a qual ainda não foi nomeada, ele insiste na limpeza dela. Shimamura recorda da primeira visita, longo flashback.

Ele pedira uma gueixa mas a hospedaria indicou essa mulher, que não era gueixa mas participava das festas e danças. Ela disse ter dezenove anos e que ia ser gueixa em Tóquio. Fala em um “amo” que a “adotou” mas morreu e ela voltou para o interior. Shimamura tem impressões conflitantes da mulher, parece prostituta, mas parece amadora, parece gueixa, não parece gueixa. O verbo parecer é frequente. Ele pede a mulher que providencie uma gueixa, ela se incomoda com o pedido. Ele diz que a quer como amiga e que precisa de uma gueixa: que seja jovem, que não fale demais e que seja limpa. Shimamura tem a estranha ocupação de crítico de danças ocidentais sem assistir a nenhum espetáculo ocidental. Shimamura insiste que quer uma gueixa cedo porque não quer ficar com as sobras.

Em toda a novela, não há uma única ocasião em que uma relação sexual seja descrita ou mesmo insinuada de forma clara para nós ocidentais.

Chega uma gueixa de dezessete anos, mas Shimamura perde o desejo, despede a moça e se sente feliz porque desistiu. Percebe que queria somente aquela mulher limpa e de seios fartos. De noite, a mulher vem bêbada ao quarto dele, mais de uma vez, uma noite confusa, agitada, ela e as outras estão atendendo fregueses e são obrigadas a beber. Mais uma vez, ela entra bêbada e ele a segura e pega os seios dela. Ele diz “estou aliviado”, não entendemos com o quê. Ela se “contém” e diz “não sou uma mulher desse tipo”. O que aconteceu efetivamente? O ato sexual? Não é dito. Antes do amanhecer, ela correu, fugindo, e ele voltou para Tóquio.

Na visita atual, a mulher está com o rosto carregado de pó-de-arroz. Ela diz que faz 199 dias da visita anterior. Ela anotou em seu diário. Escreve diários e anota os livros que lê. Ele diz que esse é um esforço inútil e percebe a pureza da existência dela. O jeito de falar dela “soava triste como a vida de um mendigo sem ambições”. Ela o ajuda no banho e vai embora.

De dia, ele passa envergonhado por um grupo de gueixas e ela, envergonhada, vai atrás dele e o convida para sua casa. Komako é o nome dela. Shimamura demonstra interesse em saber mais sobre Yoko. Komako não gosta do interesse dele. O quarto de Komako faz Shimamura pensar nela como um bicho-da-seda em seu casulo. A massagista cega faz fofocas sobre Komako: era noiva do rapaz doente e tornou-se gueixa para ajudar nas despesas.

Komako é luz e calor para Shimamura. Outra festa, outra embriaguez, passa o resto da noite no quarto de Shimamura. De manhã, não pode ir embora, não pode ir ao banho, tudo para não ser vista. Por que? Não se diz. Komako ensaia o shamisen, instrumento musical. Não foi noiva do rapaz, não se tornou gueixa por causa de alguém. Shimamura se sente preso pela força de Komako. Acha que ela está apaixonada por ele e não gosta disso. Komako toca o shamisen e canta, ele sente forte atração por ela. Shimamura anuncia a partida, Komako parece triste, com raiva. Ela acerta a cobrança dos honorários com o dono da hospedaria.

Na estação, Yoko vem chamar Komako porque o rapaz está pior; ela não vai, Shimamura parte, “ela parecia uma fruta estranha” através do vidro da estação.

Depois do túnel e fora do País das Neves, parece outro mundo, ou o País das Neves é que é o outro mundo, irreal, idílico (?), lá fora não havia neve, a lua não era tão branca. Duas pessoas se encontraram aleatoriamente no trem: “nos encontraremos novamente se assim tiver que ser”.

Final do verão, início do outono, Shimamura volta ao País das Neves. Havia prometido a Komako ir lá em 14 de fevereiro e não cumpriu a promessa. Ela diz que não mais o levará à estação, vê-lo partir é uma “sensação inexprimível”. “O senhor entende o que eu sinto?”, “entende como eu me sinto”, ela pergunta repetidamente. Komako diz que tem um “relacionamento” em outra cidade. Caminhar nas montanhas, esporte de Shimamura, é esforço vão.

Ele pensava constantemente em Komako, mas perto dela não se entendem bem. “O senhor não entende meus sentimentos”. “Você é bem mais complicada do que eu”. Encontram Yoko junto ao túmulo do rapaz que morrera.

Komako vai para o quarto dele às três da madrugada, bêbada. Yoko começa a ajudar na hospedaria. Ele sentia o amor de Komako, sentia a vida de Komako querendo roçar na dele. Sente-se atraído por Yoko também. É a temporada de bordo e Komako tem muito trabalho. Komako parecia esconder seu corpo e sua alma. Vergonha, constrangimento, humilhação. Shimamura vive bem com a herança dos pais, quer publicar um livro de luxo sobre dança, um livro sem utilidade.

Yoko vai ao quarto de Shimamura; a presença dela causa-lhe “um desconforto estranho”, ela é séria demais. As falas dela são contraditórias: odeio Komako, ajude Komako, por favor, me leve para Tóquio. Shimamura sente paixão por Komako mas diz a Yoko que não pode fazer nada por Komako. Parece-lhe que Yoko tem algo de insano.

Shimamura vai ao quarto de Komako, uma casa bem pobre, quarto humilde, parece uma toca de raposa. No quarto de Shimamura, ele diz que ela é uma boa moça, isso desestabiliza Komako, “vá embora logo”, ela pede, “você é uma ótima mulher”, ele diz, e provoca raiva e tristeza em Komako. Shimamura não quer perceber o mal que causa a Komako com suas “palavras despretensiosas”.

Longa digressão sobre o tecido chijimi, tecido feito e alvejado na neve. Shimamura pega o trem e visita cidades próximas onde, antigamente, se fazia o chijimi. Ele reflete que o calor e o frescor de Komako são penosos para ele. Percebe que está esquecido da mulher e dos filhos. Vê Komako como que batendo em uma parede vazia. Sabe que não retornará mais ao País das Neves, é tempo de ir embora. Volta do passeio, Komako faz ternas brincadeiras: “por que não me levou junto?”

Um incêndio no meio da vila, um depósito onde estava sendo exibido um filme. Episódio final. O fogo e a Via Láctea, um fogo de faz-de-conta, a Via Láctea nítida e grandiosa. “Você disse que eu sou uma ótima mulher? Por que disse isso e vai embora? Vá embora logo, tenho medo, mas vá embora”. Fogo, labaredas, fumaça que sobe, ele se sente tragado pela Via Láctea. A mão de Komako na dele, sente algo intenso, ele com dedos trêmulos, a mão dela queimava, a separação se aproxima. Um corpo de mulher cai do andar superior em chamas, parece um mundo irreal, era Yoko, tristeza e angústia indefiníveis, Komako carrega o corpo de Yoko como um sacrifício ou uma punição, gritos de Komako quase ensandecida. Shimamura tem a sensação de que a Via Láctea o penetra em um ruído surdo. Fim.

A casa das belas adormecidas, Yasunari Kawabata, 1961

A casa das belas adormecidas, Yasunari Kawabata, 1961, 124 páginas, tradução de Meiko Shimon, Estação Liberdade.

Uma casa que proporciona a homens velhos a oportunidade de passar a noite com jovens mulheres adormecidas.

Kawabata recebeu o Nobel de Literatura em 1968. Suicidou-se em 1972. Ele buscava uma literatura menos realista, mais lírica e impressionista. Isto se faz notar em seus livros; dele, li também O país das neves, e gostei muito (veja aqui meu comentário).

Neste A casa das belas adormecidas, acompanhamos as visitas de Eguchi, um velho de 67 anos, à tal casa, por indicação de um amigo. Poucas características daquele negócio serão apresentadas: há regras, mas não sabemos exatamente quais são, tampouco o que aconteceria se as regras fossem descumpridas. Eguchi, que ainda mantém a potência sexual, não se considera um cliente típico da casa, que seriam velhos impotentes, mas parece se viciar em fazer as visitas. Não conheceremos o funcionamento da casa, como as moças são escolhidas e adormecidas, qual droga se usava, ou se estariam mesmo adormecidas. Acompanhamos cinco visitas que Eguchi faz à casa e conheceremos um pouco da vida dele.

Eguchi é casado, tem três filhas que já casaram e moram em suas próprias casas. Ele vai à casa e pensa que não voltará, mas retorna várias vezes. De cada vez, a companhia das moças nuas e adormecidas desperta pensamentos e memórias no visitante, também sonhos e pesadelos. É inquietante a atração de Eguchi pela violência, são frequentes os pensamentos dele formas de maltratar as moças. Eguchi também é atraído por pensamentos de morte, pela ideia de suicídio.

Característicos da cultura japonesa, ao menos na literatura, são os sentimentos de vergonha e de humilhação; estes sentimentos também aparecem na vida e no comportamento de Eguchi. É visível uma certa incompreensão entre as pessoas, conversas que não dizem tudo, situações não discutidas, elipses, silêncios. Para mim, ocidental, há uma permanente estranheza nas histórias contadas por autores japoneses.

Gostei muito do livro, vale a pena conhecer a obra de Kawabata, bem como de outros escritores japoneses do mesmo nível como Mishima, e Tanizaki.

Aviso de spoiler: vou resumir o enredo do livro, continue por sua conta e risco.

O livro é dividido em cinco partes que descrevem as cinco visitas feitas por Eguchi à casa das belas adormecidas.

1. Eguchi, 67 anos, sexualmente ativo, visita a casa por indicação do velho conhecido Kiga. É casado, tem três filhas e netos. É recebido pela administradora, uma mulher de 45 anos. A moça já se encontra adormecida quando Eguchi entra no quarto, ela deve ter menos de 20 anos. Eguchi sente cheiro de leite e isso lhe traz recordações e pensamentos. Toma comprimidos para dormir, pesadelos.

2. Segunda visita à casa. É outra garota desta vez. Se ele quisesse a mesma garota, teria que avisar com antecedência de dois ou três dias. A garota se mexe muito e fala, estaria mesmo adormecida? Ele sente falta das filhas. A caçula deixou de ser virgem com um pretendente, mas logo em seguida casou com outro. Eguchi não compreendeu bem a situação. Comprimidos e noite agitada.

3. Eguchi não resistiu e voltou à casa. Há muitas perguntas em todo o livro e não serão respondidas. A administradora diz que a garota da vez, outra, é mais “experiente”.

4. A quarta visita. A nova garota é mais corpulenta, Eguchi sente vontade de fazer maldades, a garota tem cheiro intenso e pouco agradável.

5. Eguchi soube que um velho morreu na casa. O corpo do velho foi levado para uma pousada de águas termais próxima e os jornais não souberam a verdade. Eguchi pensa em morrer ali com uma moça. Nessa noite, serão duas moças no quarto, sem explicação do motivo. Eguchi parece, por vezes, uma pessoa desagradável, comentários inconvenientes. A administradora fala em um “patrão”. Eguchi pensa em demônios, Buda e culpa. Uma das garotas tem aroma doce, a outra tem cheiro forte e selvagem. Esta morre no meio da noite, talvez o narcótico tenha lhe feito mal. Eguchi ouve o corpo da moça sendo levado.

Trechos:

“O velho Eguchi ainda não era o que a mulher chamava de ‘clientes que nos deixam tranquilos’, embora pudesse vir a sê-lo.”

“(O velho Kiga) dissera que ia lá sempre que o desespero de envelhecer se tornava insuportável.”

“O velho Eguchi pensou que nunca mais retornaria à casa das ‘belas adormecidas’.”

“A decrepitude hedionda dos pobres velhotes que procuravam aquela casa ameaçava atingi-lo dentro de alguns anos. Quanto da imensurável amplitude do sexo, da insondável profundidade do sexo teria ele tocado na sua vida de 67 anos?”

“Porém, essa maldade, essa crueldade acompanhada de um terror violento flutuava na mente de Eguchi, sem tomar uma forma definida. Afinal, qual seria a pior maldade de um homem contra uma mulher?”

“Seriam as ‘belas adormecidas’ uma espécie de Buda? E, além de tudo, um Buda vivo? A pele e o cheiro jovem das garotas seriam, então, o perdão e consolo desses pobres velhotes. […] chegou a pensar que, como nas lendas antigas, a garota talvez fosse a reencarnação de alguma forma de Buda. Há histórias de prostitutas ou cortesãs que se revelaram, na realidade, reencarnações da divindade.”

“Não seria aquela casa um local ideal para morrer? Atiçar a curiosidade das pessoas, receber críticas do mundo, não seria, pelo contrário, uma glória após a morte? Seria uma surpresa para os conhecidos. Não era possível calcular quanto desgosto causaria à família e aos parentes. Contudo, ser encontrado morto, espremido entre duas mulheres jovens como nessa noite, não significaria a realização de um sonho para um velho decrépito?”

Otelo, Proust, Kawabata

Desdêmona adormecida, Otelo a beija diversas vezes: “Fica assim quando estiveres morta, e eu te matarei e te amarei depois”. Esta sugestão necrófila de Otelo não é incomum na literatura, tampouco no desejo masculino: o desejo de possuir uma mulher que dorme, ou que faz de conta que dorme, ou que está bêbada e impossibilitada de reagir. Seria, talvez, um desejo de ter uma mulher absolutamente dócil, ou, quem sabe, um desejo de possuir um manequim, uma boneca, um robô. Na literatura, o famoso romance de Yasunari Kawabata, A casa das belas adormecidas, fala de homens que pagam para contemplar mulheres que dormem profundamente sob o efeito de narcóticos. Em Proust, o narrador de A prisioneira tem “amor carnal” com Albertine enquanto ela dorme – ou finge dormir:

Então, sentindo que ela estava em pleno sono e que eu não iria chocar-me em escolhos de consciência recobertos agora pela preamar do sono profundo, deliberadamente galgava sem fazer ruído o leito, deitava-me a seu lado, tomava-lhe a cintura com um dos braços, pousava os meus lábios no seu rosto, no seu coração, depois em todas as partes de seu corpo a minha mão livre, que era então, como as pérolas, levantada também pela respiração de Albertine; eu mesmo me sentia, de leve, movido pelo seu movimento regular: estava embarcado no sono de Albertine. Às vezes me propiciava ele um prazer menos puro. Não havia para isso necessidade de nenhum movimento, bastava deixar minha perna encostada à dela, como um remo largado ao qual se imprime de vez em quando uma ligeira oscilação semelhante ao bater intermitente de asa nas aves que dormem no ar. […] O ruído de sua respiração, ao se tornar mais forte, podia dar a ilusão do prazer ofegante e, quando o meu chegava ao fim, eu podia beijá-la sem lhe interromper o sono.