Capítulo 30 – Luísa Porto

Capítulo 30 – Luísa Porto

Louca. As obrigações da casa me deixam quase. Além do trabalho insano e inútil, que só me dá de bom a prata, há tantas pequenas ações domésticas que dependem de mim. A filha, o balé, a escola da filha, a roupa da filha, as roupas da casa, a faxineira, roupas para colocar na máquina, supermercado, cansa até enumerar. Preciso de descanso, preciso de uma pausa. Não tem como fugir dessa vida, não vou deixar minha filha. O marido até deixava, mas a menina, não.

Fui na casa de Ordep, lá é um paraíso de silêncio, de livros, de conversa sem crianças e sem tevê. Quando estou esgotada de tudo e quando me posso dar uma pausa, é um prêmio que concedo àquela derrotada que, por vontade própria, criou uma vidinha macabra para si. E quando e se ele aceita me ver. Ordep é um metódico extremado, insuportável, tirano. Gosto do sexo e gosto da conversa. Meu marido não merece isso, sei, mas eu mereço, eu mereço algo que me permita a sanidade, que não permita a loucura, o suicídio. Adoro a ideia de suicídio, a morte e a liberdade absoluta. Odeio campanhas antissuicídio, o suicídio é um direito, devia estar na carta da ONU ou qualquer bosta dessas.

Fui na casa de Ordep, pedi a ele que me recebesse, por dentro quase implorava, às vezes ele não quer ser interrompido, grande bosta que ele faz, divagar, pensar, escrever, ler. Eu fico puta, eu tenho inveja da vida dele, não quero ter, e fico puta por ter, tendo. Fui lá e levava um livro, um livro que eu estava redescobrindo, uma coleção de poemas de Drummond, lia muito Drummond na adolescência, gostava da poesia seca e magra dele, parecida com aquele corpo dele, seco e magro. Aprendi com Dickens a não ter receio de repetir expressões e palavras, foda-se quem achar ruim.

Li para ele o Desaparecimento de Luísa Porto, um poema longo e estranho, me encanta. Depois da primeira leitura, li de novo. Ele pegou o livro e leu trechos. Saboreamos palavras e pedaços. A Rua Santos Óleos, a mãe enferma, erma de cuidados, a filha volatilizada, sumida, diluída.

Luísa saiu para fazer compras na feira da praça, não voltou, faz três meses. Estrábica, 37 anos, o olhar desviado e terno. O poema afirma e insiste: ela não se suicidou, ela não se matou. Fico maravilhada com aquele verso as ruas mudaram de rumo, e Luísa perdeu o caminho de casa. Imagino, à noite, as ruas se rearranjando, com barulho de engrenagens, como um mecanismo de composição de dominós. E a descrição do corpo e a fotografia da moça são disfarces de realidade mais intensa. A amiga de Luísa era uma moça desimpedida, mas Luísa, não, Luísa era casta e não tinha nem namorado.

Não precisa nem Freud para saber que eu é que queria me volatilizar, desaparecer, ir na esquina e não voltar. Não posso.

Naquele restinho de tarde roubado, a gente nem se uniu, as relações carnais de Marcel, a gente só ficou junto pensando com o livro de Carlos nas mãos.

Capítulo 23.3 – Vícios novos

Capítulo 23.3 – Vícios novos

“Os progressos da civilização permitem a cada um manifestar qualidades insuspeitadas ou vícios novos que os tornam mais queridos ou mais insuportáveis a seus amigos.”

“Les progrès de la civilisation permettent à chacun de manifester des qualités insoupçonnées ou de nouveaux vices qui les rendent plus chers ou plus insupportables à leurs amis.”

Marcel Proust, Sodoma e Gomorra.

O protagonista falava da recusa terminante de Françoise em usar a nova máquina, o telefone, e até de recusar aprender a usá-la. Verifica-se que as novíssimas tecnologias do século vinte e um também produziram e estão a produzir um sem-número de comportamentos, vícios novos, insuportáveis nos amigos e conhecidos. Entre os quais, a necessidade sempiterna de exibição: inumeráveis exibem continuamente suas mínimas e tediosas atividades, da hora em que acordam até a hora em que se deitam. Não basta viver uma vida tediosa, é necessário mostrar cada passo do tédio particular.

Capítulo 22.9 – Sodoma e Gomorra

Capítulo 22.9 – Sodoma e Gomorra

Sodoma e Gomorra, Marcel Proust. O protagonista já não amava Gilberte, depois de tanto sofrimento e ciúme. Os humanos não sabem o que é amor, amam a si mesmos amando, sofrem por si mesmos sofrendo, amam a imagem de si como seres amorosos, confundem amor e posse, confundem sexo, desejo, atração e amor.

Je n’aimais plus Gilberte. Elle était pour moi comme une morte qu’on a longtemps pleurée, puis l’oubli est venu, et, si elle ressuscitait, elle ne pourrait plus s’insérer dans une vie qui n’est plus faite pour elle. Je n’avais plus envie de la voir ni même cette envie de lui montrer que je ne tenais pas à la voir et que chaque jour, quand je l’aimais, je me promettais de lui témoigner quand je ne l’aimerais plus.

Eu não amava mais Gilberte. Ela era para mim como uma morta que se chorou por longo tempo, então o esquecimento veio, e, se ela ressuscitasse, não mais poderia se inserir em uma vida que não era mais feita para ela. Eu não tinha mais o desejo de vê-la, nem mesmo aquele desejo de mostrar a ela que eu não tinha o desejo de vê-la e que, a cada dia, quando eu a amava, eu me prometia de lhe testemunhar quando eu não a amasse mais.

(Tradução do autor).

Me faire casser le pot

No Em busca do tempo perdido, o narrador (e personagem) se confunde com a personalidade do autor. Sabemos que há inúmeras características comuns aos dois. Em diversos momentos, o autor faz brincadeiras com esse campo de interseção entre ambos. Ademais, percebe-se que o narrador é não confiável, especialmente em relação a Albertine. Dela só saberemos por meio dele. Não veremos Albertine com outras mulheres, tampouco outros homens, embora o narrador suspeitoso afirme que ela tem o vício, como ele denomina, ou seja, que ela já manteve relações carnais com mulheres.

No volume 5, A prisioneira, o autor fala da possibilidade de dar “ao narrador o mesmo nome do autor deste livro”, no momento em que Albertine diz, ao acordar, “Meu Marcel”, “Meu querido Marcel”. Isto incrementa, ainda mais, a zona cinzenta entre autor e narrador.

O narrador gosta de registrar palavras, frases, modos de falar, das várias pessoas com as quais convive. Ao mesmo tempo, parece ter chiliques com palavras que considera vulgares. Em certo momento, encontramos o seguinte:

Albertine, usando da linguagem própria do meio vulgar de onde veio, ou do meio mais vulgar ainda que frequentava: “Que gaiato você é! Eu sei bem que você não é ciumento. Ademais, você já me disse antes, e então isso se vê, ora!”

Albertine, usant du langage propre, soit au milieu vulgaire d’où elle était sortie, soit au plus vulgaire encore qu’elle fréquentait : “ Quel chineur vous faites ! Je sais bien que vous n’êtes pas jaloux. D’abord vous me l’avez dit, et puis ça se voit, allez ! ”

A palavra vulgar que incomodou o narrador foi chineur. De acordo com os dicionários, chineur é de uso familiar e significa aquele que se diverte em zombar, em fazer mofa, em pregar peças. Não parece tão vulgar, mas, de qualquer forma, afetou a sensibilidade do narrador. Em português, podemos pensar em zombeteiro, palhaço, brincalhão, gaiato.

Ocasião pior para o narrador ocorre quando, pela primeira e única vez, Albertine explode com seu carcereiro. Isso acontece a partir de uma discussão sobre os Verdurin, pois Albertine se sentia desdenhada pela família e sua camarilha. O narrador diz a ela que lhe daria de boa vontade algumas centenas de francos para que ela posasse de chique e convidasse os Verdurin para um belo jantar. Considero tal proposta, de antemão, ofensiva, por conter a ideia de que a moça não é chique, ela se faria de chique.

“ Mais, ma chérie, je vous donnerais bien volontiers quelques centaines de francs pour que vous alliez faire où vous voudriez la dame chic et que vous invitiez à un beau dîner M. et Mme Verdurin. ”

Albertine fica extremamente zangada:

“Muitíssimo obrigada! Gastar um tostão com aqueles velhos, eu preferia muito mais que você me deixasse uma vez livre para que eu fosse dar…” Assim que disse isso, seu rosto ficou vermelho, ela mostrava um ar de arrependimento, colocou a mão diante da boca como se pudesse fazer voltar as palavras que acabava de dizer e que eu não tinha compreendido totalmente. “O que você disse, Albertine? – Não, nada, eu estava meio dormindo. […]”

“ Grand merci ! dépenser un sou pour ces vieux-là, j’aime bien mieux que vous me laissiez une fois libre pour que j’aille me faire casser… ” Aussitôt dit sa figure s’empourpra, elle eut l’air navré, elle mit sa main devant sa bouche comme si elle avait pu faire rentrer les mots qu’elle venait de dire et que je n’avais pas du tout compris. “ Qu’est-ce que vous dites, Albertine ? – Non rien, je m’endormais à moitié. […]”

O narrador não entendeu a frase incompleta de Albertine e permanece tentando decifrar o enigma – casser, faire casser – e, ao mesmo tempo, insistindo para que Albertine complete e explique o que ia falar.

“Ora, ao menos tenha a coragem de terminar a frase, você terminou com dar… – Oh! Não, me deixe! – Mas por quê? – Porque isso é extremamente vulgar, eu teria muita vergonha de dizer isso na sua frente. Eu não sei em que eu pensei; essas palavras, eu nem sei mesmo o sentido e que eu tinha ouvido, um dia na rua, ditas por gente muito grosseira, me vieram à boca, sem rima nem razão. Isso não se refere nem a mim nem a ninguém, eu estava sonhando alto.”

“ Enfin, au moins ayez le courage de finir votre phrase, vous en êtes restée à casser… – Oh ! non, laissez-moi ! – Mais pourquoi ? – Parce que c’est affreusement vulgaire, j’aurais trop de honte de dire ça devant vous. Je ne sais pas à quoi je pensais ; ces mots, dont je ne sais même pas le sens et que j’avais entendus, un jour dans la rue, dits par des gens très orduriers, me sont venus à la bouche, sans rime ni raison. Ça ne se rapporte ni à moi ni à personne, je rêvais tout haut. ”

Mas o narrador é persistente e continua a processar as palavras mentalmente enquanto conversa com a moça.

E de um golpe duas palavras atrozes, as quais eu não teria jamais pensado, desabaram sobre mim: “o caneco”. Eu não posso dizer que elas vieram de um só golpe, como quando, por meio de uma longa submissão passiva a uma recordação incompleta, tentando suavemente, prudentemente, ampliar a recordação, fica-se dobrado, colado a ela.

Et tout d’un coup deux mots atroces, auxquels je n’avais nullement songé, tombèrent sur moi: “le pot”. Je ne peux pas dire qu’ils vinrent d’un seul coup, comme quand, dans une longue soumission passive à un souvenir incomplet, tout en tâchant doucement, prudemment, de l’étendre, on reste plié, collé à lui.

Portanto, a mente do narrador se ilumina e ele descobre a expressão não pronunciada inteiramente por Albertine: me faire casser le pot. Literalmente, (me fazer) quebrar a panela, (me fazer) quebrar o pote. Tal expressão significa sodomizar, se fazer sodomizar, obter ou praticar a penetração anal, dito assim de forma mais escorreita, e de forma popular, em brasileiro, acredito que se pode usar dar o caneco, dar a bunda. É relevante notar que logo após apreender as palavras usadas pela moça, o narrador fala em longa submissão passiva.

Albertine, zangada e quase no final de sua paciência com todas as limitações que lhe impunha Marcel, disse, em resumo, que preferia dar a bunda do que gastar um tostão com os Verdurin. Em brasileiro e com raiva: Eu preferia dar a porra dessa bunda do que gastar um puto com os Verdurin.

O narrador se horroriza quando compreende o sentido da frase.

Horror! era isso que ela teria preferido. Duplo horror! Pois mesmo a última das putas, e que consente nisso, ou até o deseja, não emprega esta terrível expressão com o homem que a isso se presta. Ela se sentiria muito aviltada. Com uma mulher, apenas, se ela ama as mulheres, ela diz isso para se desculpar por se entregar daí a pouco a um homem.

Horreur ! c’était cela qu’elle aurait préféré. Double horreur ! car même la dernière des grues, et qui consent à cela, ou le désire, n’emploie pas avec l’homme qui s’y prête cette affreuse expression. Elle se sentirait par trop avilie. Avec une femme seulement, si elle les aime, elle dit cela pour s’excuser de se donner tout à l’heure à un homme.

Ora, no narrador, esse escândalo por conta da expressão vulgar, soa hipocrisia, visto que, nas relações carnais com Albertine, ambos usavam as palavras mais depravadas. Ademais, o narrador convive frequentemente com homens e mulheres depravados, ditos de Sodoma e Gomorra. No autor, pressuponho ironia: homossexual, não parece crível que Proust ficasse consternado com o uso da expressão.

Observo, ainda, que o narrador distorce uso da expressão usada por Albertine: na visão do narrador, tal expressão só seria utilizada entre mulheres homossexuais – o que intenta confirmar as acusações do narrador sobre a moça – pois até mesmo uma puta não usaria a expressão com um homem. É evidente que esse argumento não tem o mínimo fundamento. A distorção só favorece a narrativa obcecada de Marcel.

É curioso que Roland Barthes tenha caído na armadilha do narrador. Em Fragments d’un discours amoureux, Barthes faz relevantes considerações sobre como uma única palavra pode modificar um relacionamento, e usa como exemplo a passagem acima citada de A prisioneira. Todavia, Barthes erra ao relacionar a expressão exclusivamente com a homossexualidade feminina.

Alteração. Produção rápida, no campo amoroso, de uma contra-imagem do objeto amado. Ao sabor de incidentes ínfimos ou de indícios frágeis, o sujeito vê a boa Imagem se alterar e se inverter repentinamente.

[…] Frequentemente, é pela linguagem que o outro se altera; ele diz uma palavra diferente, e eu ouço sussurrar, de um modo ameaçador, todo um outro mundo, que é o mundo do outro. Albertine tendo soltado a expressão trivial “se faire casser le pot”, o narrador proustiano fica horrorizado, pois é o gueto temido da homossexualidade feminina, da cantada grosseira, que se revela de um golpe: toda uma cena pelo buraco da fechadura da linguagem. A palavra é uma substância química tênue que opera as mais violentas alterações: o outro, mantido longamente no casulo de meu próprio discurso, faz ouvir, por uma palavra que lhe escapa, as linguagens que ele recebeu por empréstimo, e que, por consequência, outros lhe emprestaram.

Altération. Production brève, dans le champ amoureux, d’une contre-image de l’objet aimé. Au gré d’incidents infimes ou de traits ténus, le sujet voit la bonne Image soudainement s’altérer et se renverser.

[…] Bien souvent, c’est par le langage que l’autre s’altère ; il dit un mot différent, et j’entends bruire d’une façon menaçante tout un autre monde, qui est le monde de l’autre. Albertine ayant lâché l’expression triviale « se faire casser le pot », le narrateur proustien en est horrifié, car c’est le ghetto redouté de l’homosexualité féminine, de la drague grossière, qui se trouve révélé d’un coup : toute une scène par le trou de serrure du langage. Le mot est d’une substance chimique ténue qui opère les plus violentes altérations : l’autre, maintenu longtemps dans le cocon de mon propre discours, fait entendre, par un mot qui lui échappe, les langages qu’il peut emprunter, et que par conséquent d’autres lui prêtent.

A análise barthesiana da alteração súbita na imagem que se tem do outro pelo uso inesperado de uma palavra ou expressão me parece verdadeira e densa, mas reitero que a conexão entre “faire casser le pot” e homossexualidade feminina não está na expressão, e sim na mente doentia do narrador.

(Todas as traduções são de Paulo Mendes).

A prisioneira, Marcel Proust (1923)

Releitura de A prisioneira.

Já escrevi aqui minha opinião sobre A prisioneira. Reli o livro. Por que reler se há tantos livros para ler? A releitura me faz aprofundar o conhecimento da obra e do autor. É como estudar. Cada um dos pouquíssimos leitores que existem no Brasil vai ter seu método. Aquele vai ler um livro por semana, até dois. Eu consigo ler um livro médio por semana. Mas será que eu apreendi aquele livro? E há livros tão tão relevantes que merecem um mergulho mais largo do que apenas uma semana.

Acrescento aqui algumas observações sobre A prisioneira, além do que já escrevi. O volume pode ser lido separadamente, ou seja, mesmo sem ter qualquer conhecimento sobre os outros volumes da obra completa, este livro pode ser lido e compreendido sem dificuldade.

O enredo conta o período em que Albertine habita a casa de Marcel, em Paris, e termina no dia em que Albertine abandona a casa. Marcel é um rapaz extremamente ciumento que quer manter Albertine longe de qualquer tentação sexual ou amorosa. Quer que a moça esteja sempre disponível para seu deleite e, ao mesmo tempo, fica cansado de ter compromissos com ela. Fora a narração dos dias de Marcel e Albertine, a única variação da trama é a narração da participação de Marcel em uma festa na casa dos Verdurin, uma família rica.

A história é contada em primeira pessoa, Marcel nos conta o que acontece e o que pensa, e sua vida interior é intensa. Tudo é analisado, autopsiado. Marcel não é um narrador confiável. Só conhecemos Albertine por meio de Marcel e do seu ciúme obsessivo. Tudo é instável, as definições são postas e contrapostas. É um livro impressionista. Albertine é e não é, Marcel ama e não ama.

Objetivamente, vemos que Marcel foi uma criança frágil, e de saúde frágil, dependente do amor da mãe e da avó, e sofrendo a rigidez do pai. O menino frágil e sentimental se tornou um rapaz frágil e tirano. Egoísta, ciumento e preguiçoso, impedido de agir por suas indecisões, procrastinador e sonhador. No futuro, no dia seguinte, ele vai tomar as decisões necessárias, a ação começará no dia seguinte.

Tudo é distorcido pelo ciúme e pelo medo de Marcel. Cada um poderá ter sua própria impressão de Albertine, mas não se terá certeza. Para mim, Albertine é uma moça que amava Marcel, compreendia as limitações e temores deles, abdicou de amigos e de diversões para viver do modo que ele desejava, mas nada disso foi suficiente. Ela tentou até o seu limite ficar ao lado de Marcel, mas percebeu que ele nunca mudaria. Marcel não acredita no amor, tampouco tem qualquer intenção de satisfazer o outro, não quer um relacionamento, quer um serviço. Albertine, então, desiste.

Livro excepcional. Em quase todas as páginas se vai encontrar trechos relevantes e que fazem pensar.

A morte de Bergotte e a tela de Vermeer.

A morte de Bergotte e a tela de Vermeer. Proust, A prisioneira.

Bergotte estava doente, porém um crítico escreveu sobre o quadro Vista de Delft de Vermeer que estava em exposição em Paris. Bergotte adorava e cria conhecer muito bem o quadro. Todavia, o crítico destacava um pedacinho de parede amarela, tão impressionante que era como uma preciosa obra de arte chinesa. Bergotte não se recordava desse pedacinho amarelo e foi visitar a exposição.

Mais un critique ayant écrit que dans la Vue de Delft de Ver Meer (prêté par le musée de La Haye pour une exposition hollandaise), tableau qu’il adorait et croyait connaître très bien, un petit pan de mur jaune (qu’il ne se rappelait pas) était si bien peint, qu’il était, si on le regardait seul, comme une précieuse oeuvre d’art chinoise […].

Mesmo não se sentindo bem, Bergotte se põe a admirar o quadro de Vermeer. Graças ao crítico, ele nota, pela primeira vez, os pequenos personagens em azul, nota que a areia era rosa, e o pequeno pedacinho de parede amarela.

[..] Il remarqua pour la première fois des petits personnages em bleu, que le sable était rose, et enfin la précieuse matière du tout petit pan de mur jaune.

No entanto, abatido pela doença, Bergotte começa a passar mal, cada vez pior. Proust faz, então reflexões sobre a morte e também sobre o esforço dos artistas.

Nova crise prostrou-o, ele rolou do canapé ao chão, acorreram todos os visitantes e guardas. Estava morto. Morto para sempre? Quem o poderá dizer? Certo, as experiências espíritas não fornecem a prova de que a alma subsista, como também não a fornecem os dogmas da religião. O que se diz é que tudo se passa em nossa vida como se nela entrássemos com o fardo de obrigações contraídas numa vida anterior; não existe razão alguma em nossas condições de vida nesta terra para que nos julguemos obrigados a praticar o bem, a ser delicados, mesmo a ser corteses, nem tampouco para que o artista culto se julgue obrigado a recomeçar vinte vezes um trabalho, cuja admiração que suscitará pouco lhe há de importar ao corpo comido pelos vermes, como o pedaço de parede amarelo pintado com tanta ciência e requinte por um artista desconhecido para sempre e apenas identificado pelo nome de Vermeer. Todas essas obrigações que não encontram sanção na vida presente parecem pertencer a um mundo diferente, fundado na bondade, no escrúpulo, no sacrifício, mundo diferente deste e do qual saímos para nascer nesta terra, antes talvez de voltar a viver nele sob o império dessas leis ignotas a que obedecemos porque trazíamos em nós o seu ensinamento, sem saber que aí as traçara – essas leis de que nos aproxima todo labor profundo da inteligência e que são invisíveis, nem sempre, aliás! – para os tolos. De sorte que não há inverossimilhança na ideia de não ter Bergotte morrido para sempre. Enterraram-no, mas durante toda a noite fúnebre, nas vitrinas iluminadas, os seus livros, dispostos três a três, velavam como anjos de asas espalmadas e pareciam, para aquele que já não existia, o símbolo da sua ressurreição.

O quadro de Vermeer pode ser visto em alta resolução na Wikipedia. Hoje, não precisamos mais sair doentes para ver um quadro famoso. Evidentemente, ver uma obra de arte ao vivo é muito melhor que vê-la em uma tela de computador. Entretanto, hoje, Bergotte não teria saído de casa com a saúde precária para rever o quadro.

Vista de Delft (1661) está na Mauritshuis, a Casa de Maurício, um pequeno e excepcional museu na cidade de Haia, que foi a casa do nosso Maurício de Nassau, e que expõe obras da coleção do próprio. Lá encontramos também a Moça com brinco de pérola, Vermeer, e a A lição de anatomia do Dr. Tulp, Rembrandt.

A seguir, a tela de Vermeer e os detalhes que são citados por Proust. Mas aconselho ver o quadro na Wikipedia.

Otelo, Proust, Kawabata

Desdêmona adormecida, Otelo a beija diversas vezes: “Fica assim quando estiveres morta, e eu te matarei e te amarei depois”. Esta sugestão necrófila de Otelo não é incomum na literatura, tampouco no desejo masculino: o desejo de possuir uma mulher que dorme, ou que faz de conta que dorme, ou que está bêbada e impossibilitada de reagir. Seria, talvez, um desejo de ter uma mulher absolutamente dócil, ou, quem sabe, um desejo de possuir um manequim, uma boneca, um robô. Na literatura, o famoso romance de Yasunari Kawabata, A casa das belas adormecidas, fala de homens que pagam para contemplar mulheres que dormem profundamente sob o efeito de narcóticos. Em Proust, o narrador de A prisioneira tem “amor carnal” com Albertine enquanto ela dorme – ou finge dormir:

Então, sentindo que ela estava em pleno sono e que eu não iria chocar-me em escolhos de consciência recobertos agora pela preamar do sono profundo, deliberadamente galgava sem fazer ruído o leito, deitava-me a seu lado, tomava-lhe a cintura com um dos braços, pousava os meus lábios no seu rosto, no seu coração, depois em todas as partes de seu corpo a minha mão livre, que era então, como as pérolas, levantada também pela respiração de Albertine; eu mesmo me sentia, de leve, movido pelo seu movimento regular: estava embarcado no sono de Albertine. Às vezes me propiciava ele um prazer menos puro. Não havia para isso necessidade de nenhum movimento, bastava deixar minha perna encostada à dela, como um remo largado ao qual se imprime de vez em quando uma ligeira oscilação semelhante ao bater intermitente de asa nas aves que dormem no ar. […] O ruído de sua respiração, ao se tornar mais forte, podia dar a ilusão do prazer ofegante e, quando o meu chegava ao fim, eu podia beijá-la sem lhe interromper o sono.

Homenzinho com capuz, Proust

Proust conta de uma loja na qual se colocava um bonequinho na vitrine: com capuz, havia chuva, sem capuz, havia sol; uma brincadeira do dono da loja. A seguir, ele diz:

[…] acredito que, na minha agonia, quando todos os meus outros “eu” estiverem mortos, se vier a brilhar um raio de sol quando eu estiver a dar os meus últimos suspiros, o pequeno personagem barométrico sentir-se-á bem contente e tirará o capuz para cantar: “Ah!, até que enfim, um dia bonito.”

O “universo” está se lixando para nós, para nossas dores pessoais. E quando ele fala em “meus outros ‘eu’”, me faz pensar em Pessoa, Fernando.

A prisioneira, Proust, Marcel

Primeiro parágrafo de A prisioneira.

Logo de manhã, com a cabeça ainda voltada para a parede, e antes de ver, acima das grandes cortinas da janela, que matiz tinha o alvor do dia, já eu sabia como estava o tempo. Os primeiros rumores da rua haviam-mo informado, segundo me chegavam amortecidos e desviados pela umidade ou vibrantes como flechas na área ressonante e vazia de uma manhã espaçosa, glacial e pura; desde o rodar do primeiro tramway, entendia se ele estava desesperado na chuva ou de partida para o azul. […] Aliás, foi sobretudo do meu quarto que percebi a vida exterior durante essa época. […]

Dès le matin, la tête encore tournée contre le mur, et avant d’avoir vu, au-dessus des grands rideaux de la fenêtre, de quelle nuance était la raie du jour, je savais déjà le temps qu’il faisait. Les premiers bruits de la rue me l’avaient appris, selon qu’ils me parvenaient amortis et déviés par l’humidité ou vibrants comme des flèches dans l’aire résonnante et vide d’un matin spacieux, glacial et pur ; dès le roulement du premier tramway, j’avais entendu s’il était morfondu dans la pluie ou en partance pour l’azur. […] Ce fut, du reste, surtout de ma chambre que je perçus la vie extérieure pendant cette période. […]

O jogo de Proust

Tatiana Feltrin, no último vídeo de uma série sobre Proust, mostra bem como são bons os sete livros. Se não me engano, ela fez uns 38 vídeos sobre a leitura do “Em busca”, mas o último é o fechamento, a visão final dela. Talvez, 38 vídeos seja excessivo. Dá para ler os sete livros em, por exemplo, sete semanas, ou um pouco mais. Eu li e já reli algum e chego até a levantar a hipótese de que dá para começar a ler por qualquer volume, sem respeitar a ordem, como um Jogo da Amarelinha, porque cada livro é ligado aos outros tanto para frente como para trás, mas a sequência é menos importante. Como diz Feltrin, há páginas tediosas, mas de repente vem um  trecho de luminosidade. É conveniente anotar o nome dos personagens, pois são muitos e aparecem repetidas vezes em diversos livros. De todo modo, o fato de pegar um volume, por exemplo, o 5, e começar a ler sem saber o anterior da história, não tira o brilho do volume. E o volume vai iluminar os outros. Se no 5, Albertine é o centro, o autor já diz que a conheceu em Balbec no grupo das raparigas em flor (vol 3). Acho que Proust fez uma obra que é toda interligada e se pode começar por qualquer lugar. Meus volumes favoritos são o 1, o 5 e o 6.