Pedaços, Tabacaria, espaço

Fui reler aquele trecho de Tabacaria, Fernando Pessoa, que você indiretamente citou:

[…] Ele morrerá e eu morrerei.

Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.

A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.

Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,

E a língua em que foram escritos os versos.

Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente

Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, […]

.

E aí foi-se encadeando ideias e lembranças, especialmente aquela do Paradoxo de Fermi (copiando a Wikipedia: a aparente contradição entre as altas estimativas de probabilidade de existência de civilizações extraterrestres e a falta de evidências para, ou contato com, tais civilizações).

Pessoa diz, no poema, que tem gente pela aí. Se tem, é melhor o planetinha azul ficar quieto e escondido. No livro “Sob a pele”, imagine que um povo do espaço está aqui, até compraram uma fazenda na Escócia, e eles respiram oxigênio, mas lá no planeta deles o oxigênio tem que ser produzido, extraído de minas, sei lá. No “Três corpos”, o planeta deles é terrível, com a irregularidade de um sistema de três estrelas. Esse planetinha aqui é uma mina, de água, de oxigênio.

E aquela história que todos sabemos tão bem: se uma civilização conseguir chegar aqui, eles serão superiores: nós seremos os indígenas, os astecas, os incas.

No conto de Ted Chiang, “História da sua vida” – muito melhor do que o filme “A chegada” – os cabas de outro planeta são até bonzinhos. Eles chegam em centenas de naves, ficam lá paradões, e quando se pergunta o que vieram fazer, dizem “observar”, e depois vão embora tão silenciosamente quanto. E ninguém sabe ou vai saber se eles eram cientistas, exploradores, ou turistas dando uma voltinha e olhando os animais selvagens.

No livro “Despertar”, de Octavia Butler, os Oankali chegam aqui depois que a gente já danificou quase irreversivelmente o planetinha azul – quase virou cinza, e tem gente sobrevivendo mal aqui e ali. Os Oankali recolhem os sobreviventes e recuperam parcialmente o planeta. Mas o objetivo deles é levar tudo aqui embora com eles. Oankali, na língua deles, significa algo próximo de “negociador”, “trocador”, eles trocam DNA com todos os povos e animais e plantas que encontram – e não têm planeta próprio, viajam eternamente em suas naves-planetas-criaturas-vivas.

Foi isso.

Capítulo 17.2 – Camus Pessoa

Capítulo 17.2

Tabacaria é um poema de Fernando Pessoa, escrito em 15 de janeiro de 1928, e publicado em julho de 1933. Pessoa atribuiu o poema a Álvaro de Campos, um de seus heterônimos. O estrangeiro é o livro mais famoso de Albert Camus, publicado em 1942. Considerando-se as datas, Camus poderia já ter conhecimento do poema quando escrevia seu romance. Há um trecho em O estrangeiro que guarda semelhanças com o poema de Pessoa.

Em Camus, a janela do quarto dá para uma rua movimentada, há uma menina que passa, a tabacaria do outro lado da rua, há o chocolate, o dono da tabacaria, uma cadeira e o cigarro. A impressão que se tem é de uma reconstrução do poema de Pessoa, talvez involuntária, talvez proposital. Em Pessoa, os elementos citados presentes na origem e, fantástico, a condenação (ao degredo) e a sensação de que “tudo isto é estrangeiro”. Eis o trecho de Camus:

Meu quarto dá para a rua principal do bairro. A tarde estava bonita. No entanto, a rua parecia oleosa, as pessoas esparsas e, mais, tinham pressa. Primeiro, eram as famílias que passeavam, […] uma menina com um grande laço cor-de-rosa e sapatos de verniz preto. […]

Depois deles, pouco a pouco, a rua ficou deserta. Acho que os espetáculos tinham começado em todos os lugares. Só se viam nas ruas os comerciantes e os gatos. O céu estava puro, mas sem brilho, por cima dos fícus ao longo da rua. Na calçada em frente, o dono da tabacaria pegou uma cadeira, instalou-a diante da porta e sentou-se a cavalo, apoiando-se com os dois braços no encosto. Os bondes, há pouco cheios, estavam quase vazios. No pequeno Café Pierrot, ao lado da tabacaria, o empregado varria a serragem na sala deserta. Era realmente domingo.

Virei minha cadeira e coloquei-a como a do dono da tabacaria, porque achei que assim era mais cômodo. Fumei dois cigarros, entrei para buscar um pedaço de chocolate e voltei para comê-lo à janela. Pouco depois, o céu escureceu e achei que íamos ter uma tempestade de verão. Pouco a pouco, no entanto, o céu se foi desanuviando. Mas a passagem das nuvens deixara sobre a rua uma promessa de chuva que a tornou mais sombria. Fiquei muito tempo olhando o para o céu.

O poema de Pessoa é longo, não vou repeti-lo aqui; apenas destacar as semelhanças que vislumbro.

Janelas do meu quarto, […]

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, […]

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. […]

Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar? […]

(Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) […]

Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, Vejo os cães que também existem, E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, E tudo isto é estrangeiro, como tudo.) […]

Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse, E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, Calcando aos pés a consciência de estar existindo, […]

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada […] Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. […]

Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. […]

Quod erat demonstrandum.

Homenzinho com capuz, Proust

Proust conta de uma loja na qual se colocava um bonequinho na vitrine: com capuz, havia chuva, sem capuz, havia sol; uma brincadeira do dono da loja. A seguir, ele diz:

[…] acredito que, na minha agonia, quando todos os meus outros “eu” estiverem mortos, se vier a brilhar um raio de sol quando eu estiver a dar os meus últimos suspiros, o pequeno personagem barométrico sentir-se-á bem contente e tirará o capuz para cantar: “Ah!, até que enfim, um dia bonito.”

O “universo” está se lixando para nós, para nossas dores pessoais. E quando ele fala em “meus outros ‘eu’”, me faz pensar em Pessoa, Fernando.