Jonas, o copromanta, Patrícia Melo

Jonas, o copromanta, Patrícia Melo, trecho:

“Reli três vezes o conto para ter certeza de que não estava dando meus próprios voos. Admito que sou um leitor obsessivo e que, com frequência, reescrevo diletantemente as histórias de meus escritores preferidos. Não que eu seja crítico ou plagiador, ou, pior que tudo isso, fraco de imaginação. Reescrevo-as por uma questão de justiça. Alguns personagens merecem destinos melhores. Raskolnikof, por exemplo, jamais deveria ter ido para a Sibéria, e muito menos se casado com a chata da Sônia. No meu Crime e castigo, que se chama Crime sem castigo, Raskolnikof, além de matar as duas velhas inúteis, comete mais uma série de assassinatos e torna a humanidade melhor, como aliás era seu projeto inicial. E minha Lolita não acaba num fim de mundo à toa. Ela dopa e castra o pedófilo Humbert Humbert, tendo antes a inteligência de roubá-lo.”

A metamorfose, Franz Kafka (1915).

Capítulo 21.2 – A metamorfose

A metamorfose, Franz Kafka (1915).

O famoso livro de Kafka pode ser resumido como a história de um homem que acorda transformado em inseto e das consequências que advêm da transformação. O que acontece se acordo transformado em inseto? O impacto na vida do novo inseto e na vida de sua família. Como decorrem os dias na nova situação e como tudo termina. Este tipo de pensamento deve ter guiado o autor na composição do livro. Rios de tinta já foram escritos sobre este livrinho de noventa páginas que pode ser lido em um dia ou dois e que foi escrito, diz-se, em vinte dias. Vou colaborar com o oceano acrescentando um filete de pensamentos que me ocorreram durante a releitura do livrinho.

Símbolo, significado. O mundo é absurdo, nada tem explicação, somos seres incapazes de conhecer o sentido do mundo. O universo é infinito e, como tal, tudo pode acontecer, inclusive um homem acordar transformado em inseto. A transformação em inseto também pode significar que Gregor Samsa, o provedor da família composta por pai, mãe e Grete, a irmã de dezessete anos, desistiu, repentinamente, de continuar a ser o provedor. Gregor Samsa desistiu de participar da vida cotidiana, de pegar o trem nos mesmos horários, de trabalhar na mesma empresa detestada, para o mesmo patrão detestado. Tornou-se, deste modo, um pária, um inseto, um asqueroso, um insignificante, um nada. Imagine um pater familias que foge a seus deveres de provedor. Imagine um adulto que cai em depressão ou que perde o emprego. Imagine um adulto que adoece de forma incapacitante. A trajetória de tal indivíduo é de decadência, é para baixo sem apelação. Assim, Gregor vai de filho respeitado a inseto temido, até mesmo digno de cuidados, e depois a uma coisa jogada no quarto de despejos, empoeirada, doente, suja, a qual todos são indiferentes. Um peso morto que a família arrasta consigo. A morte do inseto é um alívio.

O inseto e os sanguessugas. O trabalho não é normal. Em termos gerais, jovens e velhos não trabalham, portanto, um terço da humanidade trabalha. Quantas pessoas dependem de cada pessoa que trabalha? No caso de Gregor Samsa, três pessoas dependiam do esforço dele. Gregor quase não tinha vida própria e seus ganhos eram quase totalmente empenhados na sustentação da família. Os três familiares eram os insetos, naquela época, ou, pode-se dizer, sanguessugas, para continuar com animais invertebrados. No momento em que Gregor se torna incapaz de prover, os três elementos do grupo mostram que a inatividade anterior era opcional. Antes, o pai passava horas a ler os jornais durante a manhã, e ao anoitecer também lia o jornal em voz alta para a mãe – e havia até uma criada na casa. Quando Gregor chegava exausto, o pai estava “deitado, de pijama, numa cadeira de braços” e “não conseguia manter-se de pé e se limitava a erguer os braços para o saudar”. Depois do evento, o pai voltou à ativa, firme, “envergando urna bela farda azul de botões dourados”, e “brilhavam-lhe os olhos pretos, vívidos e penetrantes”. Assim, também a mãe e a irmã começaram a trabalhar.

O tempo. A marcação do tempo é relevante no desenvolvimento do romance e do protagonista. No início, Gregor se preocupa com minutos, o trem das cinco, a empresa que abre às sete, mais dez minutos e ele vai se levantar. Então, passa-se um dia, dois, e anota-se um mês, dois meses e três meses. Gregor esperava o Natal para anunciar a decisão de assumir mais despesas e colocar Grete no Conservatório. Não se registra o Natal, mas depressa chega a sensação da primavera e o autor nos anuncia que é março. Pode-se deduzir que se passaram seis meses, mas, para o inseto, o tempo deixou de existir, ele sequer sabe se o Natal já passou. O tempo e o trabalho são angústias do indivíduo que o inseto deixa para trás, gradativamente.

Seres contraditórios. Gregor Samsa sentia-se vigiado pela empresa, não gostava do emprego e colocara um prazo máximo para permanecer ali, cinco anos. Todavia, pensava em assumir mais despesas com a educação da irmã.

O processo. Os acontecimentos nos atingem e não conseguimos descobrir as causas. O caixeiro-viajante “é muitas vezes vítima de injustiças” quando regressa de suas viagens e sofre então “funestas consequências”, todavia “não consegue descobrir as causas originais”. Não controlamos a máquina do mundo, sequer a compreendemos.

O alívio. A família vivia assoberbada e exausta enquanto Gregor passeava pelas paredes e teto e passava horas a olhar a rua pela janela. Enfim, como a pessoa doente e incapacitada que morre, como o filho desajustado que some no mundo para nunca mais, como o parente louco que faz o favor de morrer ou de se suicidar, o inseto morre e a família respira. Os três tiram um dia de folga, o mundo parece outro, mais luminoso e, agora, podem recomeçar a fazer planos.

O inseto. Cabe destacar que Kafka se dizia irmão espiritual de Dostoiévski, e na obra do escritor russo encontramos a figura recorrente do inseto, uma possível gênese da história de Gregor Samsa. Em Os irmãos Karamázov, o tema do inseto surge quando o narrador define Fiódor Karamázov, o pai: “Profundamente corrompido e luxurioso até a crueldade como um inseto pernicioso, Fiódor Karamázov, nos momentos de embriaguez, experimentava uma angústia atroz.” Posteriormente, Dmitri, o primogênito, cita um poema em que um dos versos diz: “aos insetos, a lascívia”. E Dmitri acrescenta: “Eu sou esse mesmo inseto, não sou um inseto perverso? (…) Isso tudo ainda não é nada (…) embora o cruel inseto já tivesse crescido, já tivesse encorpado em minha alma.” Ademais, no livro Memórias do subsolo, o protagonista afirma: “Tenho agora vontade de vos contar, senhores, queirais ouvi-lo ou não, por que não consegui tornar-me sequer um inseto. Vou dizer-vos solenemente que, muitas vezes, quis tornar-me um inseto. Mas nem disso fui digno.

É relevante notar que a palavra inseto (Ungeziefer, em alemão) somente aparece uma única vez no livro de Kafka. A gente lê a novela e nem percebe isso, parece que a palavra inseto é frequente, mas é somente a ideia do inseto, a imagem do inseto, instilada pelo autor em nossa mente no primeiro parágrafo, que contamina toda a narração – e nisto Kafka foi genial. Observa-se, também, que a criada chama o bicho de besouro de esterco (Mistkäfer), mas isso não significa que o inseto seja um besouro: é apenas a imagem mais próxima que se formou na mente da criada, que está sendo simpática com o bichinho.

A metamorfose é um livro fácil de ler e, ademais, intrigante, denso, e que proporciona um sem-número de interpretações, de leituras, de delírios, de pensamentos.

Castigo

Capítulo 20.2 – Castigo

No fim e na essência, somos totalmente, absolutamente, completamente livres. Mas não acreditamos de verdade nisso. Podemos fazer qualquer coisa que quisermos, inclusive nos matar, a nós mesmos, e uns aos outros. De fato, já fazemos isso todos os dias.

Crime e castigo, Dostoiévski, explora essa ideia: o personagem afirma ser livre para matar sem qualquer motivo, mas não se revela a altura dos grandes pensamentos que o moveram ao crime; o remorso o corrói, ele sente necessidade de ser descoberto e castigado; consegue seu objetivo e termina na Sibéria com a insossa Sofia.

O conto O coração denunciador, Poe, segue o mesmo caminho: o homem mata sem motivo, mas o coração do morto, batendo e batendo nos ouvidos do assassino, fazem com que se entregue à polícia.

O estrangeiro, Camus, realiza melhor o projeto: não há arrependimento, viver ou morrer é igual, resta somente a indiferença – embora o personagem ainda espere, ao menos, o ódio de seus semelhantes no dia da execução da sentença.

Anotações Karamázov

Anotações Karamázov.

Os irmãos Karamázov, Romance em quatro partes e um epílogo, Fiódor Dostoievski, 1880, Editora 34. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Desenhos de Ulysses Bôscolo.

Do autor

Aqui, Dostoiévski apresenta suas dúvidas a respeito do interesse que o romance e o “seu herói” Aliócha podem vir a ter para o leitor. Anuncia que este é o primeiro volume da história de Aliócha e que pretende escrever o segundo, o que nunca vai se concretizar porque Dostoiévski morreu cerca de quatro meses depois da publicação deste livro. São duas páginas divertidas em que o autor parece conversar com o leitor.

Primeira parte

Livro I: História de uma família

I. Fiódor Pávlovitch Karamázov

Apresenta o pai, Fiódor Karamázov, ladino, mulherengo, palhaço e desprezível. Primeiro casamento, viuvez e o primogênito, Dmitri.

II. Descartado o primeiro filho

Dmitri é criado por parentes distantes e só se aproxima do pai quando adulto. Assemelha-se ao pai quanto à bebida e às mulheres.

III. Segundo casamento e novos filhos

Dois filhos, Ivan e Alieksiêi, morte da segunda esposa, filhos criados por um parente distante. Ivan é separado de Aliócha para estudar, cursa a universidade e adulto retorna para a cidade do pai.

IV. O terceiro filho, Aliócha

Apresenta Alieksiêi, ou Aliócha, o caçula, sereno, bobão, todos o amam. Aliócha comunica ao pai que vai ser noviço em um mosteiro.

“Ele mesmo (Fiódor Karamázov) não era nem de longe pessoa religiosa; talvez nunca tivesse acendido uma vela de cinco copeques diante de um ícone. Esse tipo de gente experimenta arroubos de sentimentos repentinos e pensamentos repentinos.”

V. Os startzí

Apresenta o mosteiro, discorre sobre o stariétz (guia espiritual) Zossima e anuncia o encontro dos Karamázov com Zossima no mosteiro.

Livro II: Uma reunião inoportuna

I. A chegada ao mosteiro

Os Karamázov e parentes, exceto Dmitri, chegam para o encontro com Zossima.

II. O velho palhaço

O encontro com o stárietz, o pai Karamázov faz piadas. Diz-lhe o stárietz: “E o principal: não se envergonhe tanto de si mesmo, porque é só disso que tudo decorre.”

III. Mulheres de fé

O stárietz atende as mulheres. A mulher cujo filho morreu antes de três anos, assim como o filho de Dostoiévski. A mulher que matou o marido recebe o perdão do stárietz. A klikucha. Klikuchas são mulheres histéricas, acalmavam-se com a visão do Santíssimo ou a bênção de um padre.

O narrador aparece em frases como: “Estavam em nossa cidade…”, “Não sei como é hoje, mas quando eu era menino tive a oportunidade de…”.

IV. Uma senhora de pouca fé

O stárietz ainda com as mulheres. Lise, muito jovem e doente, em cadeira de rodas, e sua mãe, a senhora Khokhlova, que não tem fé. Lise e Aliócha: Lise “ama” Aliócha e sente prazer em constrangê-lo.

V. Assim seja, assim seja!

O stárietz com os Karamázov. Discute-se a separação entre Igreja e Estado. A quantidade de crimes só aumenta, o verdadeiro castigo é o da Igreja. O Estado deve ser absorvido pela Igreja.

VI. Para que vive um homem como esse?!

Dmitri chega. O pensamento de Ivan: quando o homem não acredita na sua imortalidade, tudo se torna permitido, o egoísmo, o crime, a antropofagia. Ivan é um desesperado. O escândalo é revelado, uma baixaria: o pai e o filho Dmitri interessam-se pela mesma mulher, Grúchenka, concubina de um velho comerciante. Briga por dinheiro e mulheres. Cita-se a rica órfã, Catierina, noiva de Dmitri.

VII. Um seminarista-carreirista

Aliócha conversa com o seminarista Rakítin sobre Dmitri e crime. “Vê Aliócha, tu só me causas surpresa: como podes ser virgem? Ora, também és um Karamázov! Porque em tua família a lascívia chega a ser uma doença infecciosa. (…) Nisto consiste toda a vossa questão-Karamázov: lascivos, cobiçosos e iuródivi!”

Iuródiv: misto de homem santo e louco, que renunciava aos prazeres e ao conforto.

VIII. O escândalo

Fiódor Karamázov ofende a todos na hora do almoço com o padre igúmeno (o abade).

Livro III: Os lascivos

I. Os criados

Apresenta os criados, Grigori, Marfa e Smierdiakóv. Os medos irracionais de Fiódor Karamázov: “Profundamente corrompido e luxurioso até a crueldade como um inseto pernicioso, Fiódor Karamázov, nos momentos de embriaguez, experimentava uma angústia atroz.”

Relata, anos antes, a morte do filho recém-nascido de Grigori e o nascimento do filho da iuródiv Lizavieta.

II. Lizavieta Smierdiáschaia

Lizavieta, “a fedorenta”, grávida, não se conhece o responsável, acusam Fiódor que nega. A criança, apelidada de Smierdiakóv (derivado da palavra “fedorenta”) é criada por Grigori e Marfa. Para a criança, adotam o patronímico de Fiódor que acha isso engraçado.

III. Confissão de um coração ardente, em versos

Aliócha encontra Dmitri em um jardim. Dmitri: “Um número excessivo de enigmas oprime o homem na Terra. (…) Aí lutam o diabo e Deus, e o campo de batalha é o coração dos homens.”

IV. Confissão de um coração ardente, em anedotas

Ainda Aliócha com Dmitri. Este diz que um inseto cresceu-lhe na alma. Dmitri conta o caso com Catierina. Dmitri emprestou quatro mil e quinhentos rublos à Catierina. Ela foi pedir o dinheiro, que serviria para pagar dívidas do pai, disposta a ser usada por Dmitri que lhe entrega o valor sem nada exigir.

Observação: sabe-se que Kafka admirava profundamente Dostoiévski. O narrador compara Fiódor Karamázov com um inseto pernicioso. Dmitri se compara a um inseto, diz que um inseto toma-lhe a alma. Este trecho pode ter sido a fagulha inicial para A metamorfose. Dmitri cita um poema com um verso que diz: “aos insetos, a lascívia”. Dmitri: “Eu sou esse mesmo inseto, não sou um inseto perverso? (…) Isso tudo ainda não é nada (…) embora o cruel inseto já tivesse crescido, já tivesse encorpado em minha alma.”

V. Confissão de um coração ardente, “de pernas para o ar”

Catierina se oferece como noiva a Dmitri. Segundo Dmitri, Ivan se apaixonou por ela. Dmitri se apropriou de três mil rublos de Catierina, está apaixonado por Grúchenka, capciosa e ladina. Fiódor Karamázov ofereceu três mil rublos a Grúchenka para estar com ela. Capítulo chave. Smierdiakóv sabe de tudo, inclusive do pacote de três mil rublos. Dmitri: “Odeio a papada dele, o nariz dele, os olhos dele, aquela sua zombaria desavergonhada. Sinto um asco pessoal. Eis o que eu temo: que não consiga me conter”.

VI. Smierdiakóv

Smierdiakóv é arrogante, inteligente, ingrato, despreza a todos, sofre de epilepsia. Fiódor Karamázov possui uma estante com cento e poucos livros. Smierdiakóv, que na juventude tinha interesse por livros, fora enviado para estudar cozinha em Moscou.

VII. A controvérsia

Interessante discussão na casa de Fiódor, com Ivan, Aliócha, Smierdiakóv, Grigori, sobre fé, anátema (condenação, excomunhão, maldição), inferno, a misericórdia divina, morrer pela fé, mover montanhas com a fé.

VIII. Tomando conhaque

Continua a conversa. Fiódor Karamázov: “A Rússia é uma porcaria, se tu soubesses como odeio a Rússia (…) se Deus não existe (…) é necessário acabar com os mosteiros para a Rússia ser mais racional (…) Deus existe ou não?” Ivan: “Deus não existe tampouco a imortalidade”. Fiódor: “enforcar o primeiro que inventou Deus”. Aliócha passa mal. Dmitri invade a casa.

IX. Os lascivos

Dmitri bate em Grigori e no pai. Ciumentíssimo, imaginara erradamente que Grúchenka estava lá. Aliócha para Ivan: “Meu irmão, no que vai dar esse horror entre nosso pai e Dmitri?”

X. As duas mulheres juntas

Aliócha vai à casa de Catierina onde também já estava Grúchenka. Catierina, uma ingênua e arrogante, deu vários beijos nos lábios sorridentes de Grúchenka. Era como se estivesse apaixonada por ela. Aliócha considerou que havia ali excesso de enlevo e precipitação. Todavia, Grúchenka revela-se malévola e recorda a ocasião em que Catierina tentou se vender a Dmitri.

XI. Mais uma reputação destruída

Aliócha retorna para o mosteiro e encontra Dmitri no caminho. Conta que Grúchenka humilhou Catierina, e Dmitri acha engraçado, esse patife. No mosteiro, Aliócha lê a carta na qual Lise diz que o ama.

Segunda parte

Livro IV: Mortificações

I. O padre Fierapont

O stárietz Zossima está morrendo. Apresenta-se o padre Fierapont, jejuador, louco e iuródiv. “Suas palavras eram absurdas, mas todo iuródiv fala e age de forma ainda pior”. O padre Paissi orienta Aliócha.

II. Com o pai

Aliócha visita o pai. Fiódor tem cinquenta e cinco anos e pretende viver mais vinte anos. Possui cerca de cento e vinte mil rublos. Guarda cada copeque para si porque no futuro as mulheres não irão à casa dele de boa vontade: “Quero viver até o fim em minha sujeira, fiquem vocês sabendo. A imundície é que é mais doce. Todos falam mal dela mas nela todos vivem, só que às escondidas, enquanto que eu sou transparente”.

III. Os colegiais

Aliócha vê alguns meninos que haviam saído da escola. Um grupo joga pedras em um menino mais fraco que revida. Aliócha, por ser um Karamázov, dizem os meninos, é atacado pelo mais fraco que se chama Iliúcha.

IV. Em casa de Khokhlakova

Aliócha visita Lise. A mãe de Lise transtornada com os recentes acontecimentos, a morte próxima do stárietz, o drama entre Catierina, Ivan, Dmitri, Grúchenka: “Isso é uma tragédia, talvez seja uma comédia, tudo é absurdo”. Aliócha, o tolinho, diz a Lise que vai casar com ela. A mãe de Lise considera que Catierina ama Ivan embora diga que ama Dmitri.

V. Mortificação no salão

Naquela época, ou para aqueles personagens, tudo é monstruoso, tudo mortifica. Aliócha deduz que Catierina não ama ninguém, é orgulhosa, ama apenas o seu orgulho, quer ferir ambos, Dmitri e Ivan. Dmitri atacou um homem na taberna, o capitão Snieguirióv. Catierina pede que Aliócha entregue duzentos rublos ao ofendido.

VI. Mortificação na isbá

Aliócha visita o capitão Snieguirióv na isbá, que o capitão denomina de subsolo. Descreve-se a pobreza da isbá e da família do capitão. Iliúcha, o filho menor, é o menino que agrediu Aliócha. Faz-se um trocadilho com o nome Karamázov. Em nota, se diz que Karamázov pode derivar do turco kara, com significado de negro, ou do russo kara, castigo, já maz e mazat, do russo, significa pintar mal, emporcalhar. Donde Karamázov pode ter significados diversos como lambuzar de preto ou um castigo sujo.

VII. Ao ar puro também

Aliócha conversa com o capitão fora da isbá. Vê-se que Dmitri é um canalha talvez pior do que o pai, um personagem detestável, não merece compaixão. O capitão: “As crianças são cruéis: separadas parecem anjos de Deus, mas juntas, sobretudo na escola, são constantemente muito cruéis.” Um capítulo muito triste, a pobreza e o beco sem saída da família do capitão. O capitão não aceita o dinheiro de Catierina.

Livro V: Pró e contra

I. Os esponsais

Aliócha volta à casa de Lise. Catierina está histérica, delirando e com febre. Lise histérica, todas as mulheres histéricas. Lise e Aliócha acham que o capitão vai reconsiderar e aceitar os duzentos rublos. Promessas ingênuas de casamento e o “amor” tolíssimo do casal, Lise deve ter quinze anos e Aliócha dezenove ou vinte.

II. Smierdiakóv e seu violão

Aliócha oberva Smierdiakóv no jardim. Smierdiakóv fala para Mária: “Eu permitiria que me matassem no ventre só para não vir absolutamente ao mundo. (…) Odeio a Rússia inteira”. O adjetivo “fedorento” sempre é usado por Dostoiévski nos capítulos em que Smierdiakóv aparece. Smierdiakóv odeia Dmitri porque este esbanja dinheiro. Dinheiro que seria precioso para Smierdiakóv. Ele sonha abrir um café em Moscou.

III. Os irmãos se conhecem

Aliócha encontra Ivan na taverna. Ivan tem vinte e quatro anos, os irmãos foram separados quando tinham quinze e onze anos, Ivan foi estudar em Moscou. Os três irmãos pouco se conhecem. Ivan: “A Europa é um cemitério”. Os russos se referem à Europa como se não fizessem parte dela, a Europa citada por Ivan é a ocidental. Os ingleses fazem isso também. Ivan: “Amar a vida sem se incomodar com o sentido da vida”, e Aliócha: “amar a vida antes que venha a lógica”. Ivan: “Muitas vezes fiz a mim mesmo esta pergunta: se e xistirá no mundo um desespero que vença em mim essa sede frenética de viver, e decidi que tal coisa parece não existir, ou, reiterando, não existe antes dos trinta anos, porque, depois, eu mesmo já não vou querer, assim me parece.” Perguntado acerca de Dmitri, Ivan responde: “Por acaso eu sou o vigia do meu irmão?”, como fez Caim. Ivan: “Outros tem outro assunto, mas nós, os bisonhos, precisamos antes de tudo resolver problemas eternos, eis a nossa preocupação.”

IV. A revolta

Continuam a conversar. Ivan: “Se pode amar o próximo de forma abstrata e às vezes até de longe, mas de perto quase nunca. (…) A fera nunca pode ser tão cruel como o homem, tão artisticamente, tão esteticamente cruel. (…) Seja como for somos europeus. (…) Em todo homem, é claro, esconde-se uma fera.” O sofrimentos das crianças, que não têm culpa ou pecado. O sadismo, a satisfação de impor sofrimento a uma criança. Os sofrimentos não vingados, o edifício do destino humano é construído sobre o sofrimento dos inocentes.

V. O grande inquisidor

Uma fantasia, uma poesia elaborada por Ivan. Em Sevilha, no tempo da Inquisição, Jesus volta à Terra e é preso pelo inquisidor. A interpretação muito particular do inquisidor acerca das três tentações no deserto. As três tentações foram (1) transformar pedra em pão para saciar a fome, (2) receber o poder e a glória dados pelo demônio e (3) tentar a Deus, jogando-se do alto da torre do templo. Para o inquisidor, as tentações simbolizam milagre, mistério e autoridade. Para o inquisidor, a Igreja aceitou as tentações porque isso é o que satisfaz as multidões. Aliócha não concorda com a interpretação do inquisidor. O inquisidor: “O homem foi feito rebelde, por acaso os rebeldes podem ser felizes? (…) Os homens querem o pão da terra, não o dos céus. (…) Não estamos contigo, mas com ele.”

Ivan conta, acessoriamente, sobre uma representação ou poema que havia na Rússia. A virgem é conduzida ao inferno pelo arcanjo Miguel, como Dante na Comédia, e vê o sofrimento dos condenados. Há, inclusive, um lago de fogo: aqueles que não conseguem flutuar no lago e afundam são esquecidos até por Deus (como se Deus, existindo, alcançasse a dádiva do esquecimento). A virgem pede a Deus que perdoe a todos os pecadores, Deus nega, a virgem pede então a todos os santos que rezem com ela pelo perdão dos pecadores e por fim ela obtém de Deus a cessação dos tormentos entre a sexta-feira santa e o dia de Pentecostes. Ou seja, durante cinquenta e dois dias os condenados obtêm um alívio. E os condenados ainda a gradecem ao Senhor. Cinquenta dias de licença e depois trezentos e tantos de fogo e suplício, não sei não se é o caso de agradecer. E durante aqueles cinquenta dias o que fariam os condenados? O inferno ficaria fechado? Os condenados em animação suspensa?

VI. Ainda muito obscuro

Ivan e Aliócha se despedem. Ivan: “Tantos anos calando com o mundo inteiro e sem me dignar a falar, e de repente essa profusão de disparates”. Ivan vai para a casa do pai e na porta encontra Smierdiakóv. Ivan sente aversão a Smierdiakóv. Este reclama que é pressionado pelos dois lascivos, Dmitri e Fiódor. Smierdiakóv prevê que sofrerá um ataque de epilepsia no dia seguinte. Ele conta que Gregori está acamado e revela o código de batidas para que Fiódor abra a porta se Grúchenka chegar. Diz a Ivan que Dmitri conhece o código. Aconselha Ivan a viajar. Ivan fica sob tensão com as inúmeras insinuações do criado.

VII. “É até curioso conversar com um homem inteligente”

Ivan e o pai na casa. Ivan deitou tarde, sentiu que perdia as coordenadas. Acordou bem disposto, tomou café com o pai e foi embora da cidade logo de manhã. Na estação, pegou o trem das sete da noite para Moscou. De início, sentiu-se livre de tudo, depois, contudo, sua alma foi invadida por trevas. Durante aquele dia, Smierdiakóv sofreu um ataque epiléptico na adega, Grigori estava doente e Fiódor está só em casa, à noite, à espera de Grúchenka.

Livro VI: Um monge russo

I. O stárietz Zossima e seus visitantes

Aliócha no mosteiro com o stárietz. Zossima revela que Dmitri passará por um grande sofrimento. O stárietz diz que sua preferência por Aliócha se deve à semelhança dele com o irmão de Zossima que morreu aos dezessete anos. Para o stárietz, o irmão e Aliócha foram sinais do início e do fim de sua vida religiosa.

II. A vida do hieromonge stárietz Zossima, morto na graça de Deus, redigida a partir de suas próprias palavras por Alieksiêi Fiódorovitch Karamázov. Dados biográficos

Aliócha fez anotações sobre a vida do stárietz. O irmão de Zossima morreu de tuberculose aos dezessete anos. Antes de morrer, o irmão se tornou místico: “Este mundo é o paraíso, nós é que não temos capacidade de reconhecer”. Zossima foi enviado para estudar em Petersburgo e se tornou oficial. Desafiou um homem para um duelo e, antes do encontro marcado, passou por uma transformação espiritual. Ainda sente vergonha e tristeza de fatos ocorridos quarenta anos antes. Repetem-se as questões dostoievskianas sobre o paraíso e a culpa. Zossima inicia a vida de monge e recebe visitas de um homem de cinquenta anos, um benfeitor em sua cidade. Por fim, o homem confessa ao stár ietz que matou uma mulher quatorze anos atrás, ainda via o sangue. Isto referencia Macbeth. O homem confessa em público para pagar a sua culpa. No livro, Dostoiévski cita Otelo e Hamlet e, indiretamente, Macbeth.

III. Trechos das palestras e sermões do stárietz Zossima.

Tanto Zossima quanto o narrador, em diferentes momentos, afirmam que “é impossível viver no mundo sem criados”, uma visão bastante limitada para quem era tão perscrutador da alma e da sociedade como Dostoiévski. Zossima: “Homem, apodreces a Terra com tua aparição sobre ela e deixarás depois de ti pegadas podres”. Os suicidas são malditos, mas mesmo assim o stárietz reza por eles e recomenda a oração pelos suicidas. Morre o stárietz.

Terceira parte

Livro VII: Aliócha

I. Cheiro deletério

A notícia da morte se espalha, a multidão aflui à espera de milagres. Decepção quando o corpo do stárietz começa a feder: o cheiro deletério. Esperava-se que a possível santidade de Zossima mantivesse o corpo intacto. A senhora Khokhlakova definida pelo narrador como bondosa e pusilânime. Muitos se alegram com o cheiro deletério “pois os homens gostam de ver a queda do justo e sua desonra”. O narrador fala conosco: “por isso eu acho que…”. O corpo apodrece e as críticas ao stárietz morto aumentam, fala-se em voz alta dos defeitos do monge morto. Aliócha, o tolinho, perturbado, encontra Rakítin nas proximidades do mosteiro.

II. O momento propício

Aliócha e Rakítin vão para a casa de Grúchenka. Rakítin quer ver a degradação do santinho Aliócha.

III. A cebolinha

Grúchenka fora seduzida por um oficial polônes quatro anos atrás. Foi acolhida pelo velho comerciante Samsónov, que se tornou seu protetor. Samsonóv possui patrimônio de cem mil rublos, avarento, proveu Grúchenka de um capital pequeno, oito mil rublos, para que ela administrasse, além de uma pensão anual. Somente o velho “tivera” Grúchenka neste período. Ela apenas brincava com as paixões de Fiódor e Dmitri, a tal concorrência monstruosa. A moça era uma beldade russa, corada, cheinha, altiva, insolente, avara e modesta. Grúchenka está em casa, no sofá. A pose descrita por Dostoiévski faz pensar na “Maja vestida”, de Goya (1805). Ela está pensativa, espera um mensageiro poi s o oficial polônes está para chegar a Mókroie, uma localidade próxima. Grúchenka recebe Aliócha e Rakítin. O santarrão Aliócha e ela têm um diálogo superexcitado, pleno de misticismo. A fábula da cebolinha, o anjo da guarda que tenta tirar uma velha do inferno. Grúchenka recebe a mensagem esperada e vai ao encontro do polonês. Aliócha volta para o velório no mosteiro.

IV. Caná da Galileia

Aliócha, ajoelhado em frente ao caixão de Zossima, tem visões ou sonha. As interpretações dostoievskianas de trechos bíblicos são, muita vez, distorcidas e ingênuas, como por exemplo no caso das bodas de Caná. Dostoiévski é místico, ingênuo e utópico. Na questão dostoievskiana do “tudo é permitido se o homem não acredita na imortalidade”, Paulo foi muito além de Dostoiévski, e evidentemente muito antes deste, quando, em Coríntios, afirma que “tudo é permitido mas nem tudo convém”. Para Paulo, a liberdade do homem é total, livre arbítrio e aguente as consequências.

O stárietz aparece na visão de Aliócha. Além disso, ele vê “como se os fios de todos os inúmeros mundos de Deus confluíssem de uma só vez em sua alma, e ela tremesse toda, ao contato com esses mundos”. Diz Aliócha: “alguém me visitou a alma naquela hora”.

Livro VIII: Mítia

I. Kusmá Samsónov

Dmitri, apelido Mítia, imagina uma nova vida, longe dali, com Grúchenka, mas não tem dinheiro. Gente como ele “só sabe gastar e esbanjar a herança”, não sabem como batalhar pelo dinheiro. Dmitri é um patife, nada de bom se pode esperar dele, não é um personagem que atraia qualquer simpatia. Samsónov aconselhara Grúchenka a escolher o pai, Fiódor, e exigir casamento e participação na herança. Dmitri sonha com uma ressurreição: um novo Dmitri e uma nova Grúchenka. Dmitri vai a Samsónov, o protetor de Grúchenka, pedir dinheiro, três mil rublos emprestados em troca da possível herança de um bosque do pai. Furioso, Samsónov nega e, de sacanagem, indica que o comerciante de madeira Liágavi pode se interessar pela proposta.

II. Liágavi

Dmitri, liso, consegue nove rublos, aluga cavalos e vai em busca de Liágavi, fora da cidade. Alta noite, quando o encontra, Liágavi está completamente bêbado e Dmitri cai em profunda tristeza. No dia seguinte, Liágavi continua bêbado, Dmitri percebe que foi enganado por Samsónov e, em desespero começa a voltar para a cidade. Todavia, “comeu e sua alma serenou”.

III. Lavras de ouro

Dmitri vai à casa de Grúchenka para vigiá-la. Para se livrar dele, ela diz que tem compromisso na casa de Samsónov. Dostoiévski dedica uma página a Otelo e ao ciúme. “Otelo não é ciumento, é crédulo”, segundo Púchkin. Dmitri empenha suas pistolas a Piotr por dez rublos. Vai à casa de Khokhlakova tentar o mesmo empréstimo de três mil rublos em troca do bosque. Khokhlakova se diz médica de almas, uma médica experiente, e ele se declara um doente experiente. Ela recomenda que ele trabalhe, que vá para as lavras de ouro na Sibéria. Não empresta o dinheiro. Dmitri descobre que Grúchenka o enganou, não está na casa de Samsóno v, não está em sua casa. Ele pega uma mão de pilão como arma e vai para a casa do pai.

IV. No escuro

Na casa de Fiódor, Dmitri pula o muro, bate o código na janela, o pai aparece, Dmitri percebe que Grúchenka não está lá e foge. É derrubado por Grigori e o ataca na cabeça com a mão de pilão. Foge sujo de sangue. Descobre que Grúchenka foi para Mókroie encontrar o polonês.

V. Uma decisão repentina

Dmitri vai buscar as pistolas penhoradas. Agora está com muito dinheiro e sujo de sangue. Piotr fica alarmado, devolve-lhe as pistolas. Dmitri esbanja dinheiro na venda, manda preparar caixas de comida e bebida, uma carroça com cavalos e parte para Mókroie. Piotr sobre os excessos e as palavras de Dmitri: “esses canalhas gostam de fraseado”.

VI. Estou a caminho

Na carroça para Mókroie, o cocheiro conta uma lenda sobre o inferno: quando Jesus morreu, desceu ao inferno e libertou todos os condenados. O demônio ficou puto com o inferno vazio, mas Jesus disse: “Não te lamentes, logo chegarão grandes senhores, políticos importantes, juízes, pessoas opulentas. Como sempre. E assim será até que eu volte”.

VII. O primeiro e indiscutível

Na hospedaria em Mókroie. Considera-se que o primeiro que comeu Grúchenka tem direitos sobre ela. O primeiro é um polonês sem dinheiro, gordo, trapaceiro. Ele e um amigo estão na hospedaria com Grúchenka. Conversas tolas, baixaria como em qualquer bodega de favela recifense, uma canalhada só: Grúchenka, Dmitri, Maxímov, Kalgánov, os poloneses, as moças que vão cantar, os músicos. Os poloneses roubam no baralho e se trancam em um quarto.

VIII. Delírio

Na hospedaria, “começou uma quase orgia (…) algo desordenado e absurdo”, indecente e dissoluto. Músicas de conteúdo sexual, do tipo “papai, eu quero me casar…”. Conversas de bêbados, Dmitri faz avanços sobre Grúchenka, ela diz que ali não, que devem ser honestos e não como animais. Chegam o comissário Mikhail, o promotor Hippolit e o juiz Nikolai e acusam Dmitri do assassinato de Fiódor Karamázov e do roubo de três mil rublos.

Livro IX: Investigação preliminar

I. Início da carreira do funcionário Pierkhótin

Piotr, funcionário que pagou o penhor das pistolas de Dmitri, intrigado com toda a situação vai à casa de Grúchenka e depois à de Khokhlakova.

II. Alvoroço

Piotr vai à casa do comissário Mikhail e lá já se encontram o promotor e o juiz. Já haviam sido avisados do assassinato de Fiódor Karamázov. Todos juntos vão ao local do crime.

III. Tormento de uma alma em provações. Primeira provação

Dmitri diz que não é culpado da morte do pai. Conduz-se um interrogatório improvisado, sem advogado e sem método, com gritaria e excessos.

IV. Segunda provação

Continua o interrogatório caótico.

V. Terceira provação

Continua o interrogatório. Dmitri: “Passou-me pela cabeça, foi Smierdiakóv, mas é um covarde e não pode ter sido ele”. Tudo contra ele, as pistolas, a mão de pilão, o sangue, o dinheiro para a farra.

VI. O promotor surpreende Mítia

Recolhem-se as roupas ensanguentadas de Dmitri como prova, humilhação, meias podres de sujas, dedos feios. Dão-lhe uma roupa qualquer. De onde veio o dinheiro da farra?

VII. O grande segredo de Mítia. Os apupos

O dinheiro era a metade do que ele roubara de Catierina. Dmitri apropiara-se de três mil rublos de Catierina, usara mil e quinhentos na primeira farra com Grúchenka e guardara o restante, que veio a usar na farra atual.

VIII. Depoimento das testemunhas. Um bebê

Começam a interrogar as pessoas presentes na hospedaria, inclusive Grúchenka. Dmitri deita e tem um sonho desconexo no qual há um bebê.

IX. Mítia é levado preso

Dmitri preso: “Aceito o suplício não por o haver matado, mas por ter querido matá-lo, e é possível que realmente viesse a matá-lo”. Esse “aceito o suplício” é falso.

Quarta parte

Livro X: Os meninos

I. Kólia Krassiótkin

Corte brusco. Apresenta Kólia. É novembro, frio de menos onze graus, dois meses depois do assassinato. Kólia é arrogante, infantil, exibido, antipático, egocêntrico, “não gostava de exageros de ternura”. A mãe de Kólia tem trinta e dois anos, ficou viúva aos dezoito, é encantadora, excessivamente casta e meiga. Assim é difícil, Dostoiévski: para você, qualquer coisa fora do decoro é devassidão, e agora vem dizer que a viúva é excessivamente casta.

O professor Dardaniélov: uma brincadeira de Dostoiévski que mistura o nome do professor com a lenda de Troia. Dardaniélov, uma referência a Dardanos, pai de Tros e avô de Ilo: este fundou Ilion (Troia). O professor não soube responder quando o arrogante Kólia perguntou quem havia fundado Troia.

II. A meninada

Kólia cuida dos filhos da mulher do médico, junto com o cão Pierezvon.

III. O colegial

Kólia é o líder da turma. Ele e Smúrov passam pela feira semanal e Kólia analisa “o povo” com arrogância e ares de superioridade.

IV. Jutchka

Kólia muitas vezes fica absorto, “entregue às ideias e à vida real”. A vida na escola era a mesma de hoje, o mesmo tipo de bullying. Kólia conta a Aliócha os problemas com Iliúcha e o caso do cão Jutchka.

V. À cabeceira de Iliúcha

Kólia, o arrogante, leva o cão Jutchka para Iliúcha, todavia já estava com o cão há duas semanas: duas semanas de sofrimento desnecessário para o menino doente que ansiava pelo cão. Visita do médico.

VI. Desenvolvimento precoce

Kólia e Aliócha, exibicionismo de Kólia e o bobão do Aliócha ainda trava “amizade” com o menino.

VII. Iliúcha

Iliúcha sente que vai morrer, o pequeno drama na isbá.

Livro XI: O irmão Ivan Fiódorovitch

I. Em casa de Grúchenka

Aliócha na casa de Grúchenka: ela adoeceu por cinco semanas após a prisão de Dmitri. Reviravolta espiritual de Grúchenka, sem nenhuma credibilidade essa reviravolta, penso. O fazendeiro Maksímov de Tula agora é descrito como um “velhote desabrigado”, falha de continuidade. Samsónov, gravemente enfermo, próximo da morte. Os dois poloneses na miséria, sustentados por Grúchenka: sem motivo isso, vão trabalhar vagabundos. Smierdiakóv ficou doente desde o dia do crime. Julgamento será no dia seguinte. Ivan visitou Dmitri e Lise em segredo e não quer se encontrar com Aliócha. Lise, personagem inútil.

II. O pezinho doente

Aliócha bobão na casa de Khokhlakova. O autor revela o nome da cidadezinha da história, nome inventado, Skotoprigónsk, mistura de skot, gado, e prigon, curral, curral de gado, encurralados. Longo monólogo da insuportável Khokhlakova, que está sendo aparentemente disputada por Piotr e Rakítin. A perturbação como motivo para o crime, o “estar fora de si” que levava à absolvição de criminosos. “O mais importante é saber quem hoje em dia não anda com perturbação”, diz Khokhlakova. Imagina: alguém começa a cantar uma canção. De repente, vê algo que o incomoda, pega uma pistola e mata ao primeiro que encontra. Vai a julgamento e é absolvido. Lise está como sempre histérica.

III. Um demoniozinho

Aliócha com Lise, insuportável como a mãe. Lise: “eu quero a desordem, quero botar fogo na casa, o incêndio, a luta, a casa arde”. Aliócha: “há momentos em que as pessoas gostam do crime”.

IV. O hino e o segredo

Aliócha na prisão com Dmitri: “os Karamázov não são canalhas, mas filósofos, como os russos, todos os russos são filósofos”. O homem é a química, o cérebro, os neurônios, pensa Dmitri. Que será do homem sem Deus e sem a imortalidade? Tudo é permitido. Ao homem inteligente, tudo se permite. Dmitri acredita que o crime foi cometido por Smierdiakóv. “Todos são culpados por todos”, por isso Dmitri quer o castigo. Essa a eterna culpa dostoievskiana: ser culpado por qualquer criança que sofre. Dmitri, outra conversão como a de Grúchenka, difícil de acreditar: “Deus traz alegria, se expulsarem Deus da face da Terra, nós o encontraremos debaixo dela; para um prisioneiro é impossível passar sem Deus; nós, homens do subterrâneo, cantaremos das entranhas da Terra um hino trágico a Deus. O que é o sofrimento? Não o temo, mesmo que ele seja infinito. Agora não o temo, antes temia. Todas essas filosofias estão me matando. Deus preenche meus pensamentos e a ideia de Deus me tortura. Se Deus não existir, se for um artifício humano, o homem pode ser virtuoso sem Deus? O que é a virtude? Ivan diz que nosso pai era um porco, mas pensava certo. Tudo é permitido. Catierina está presa ao dever”. O plano de fugir para a América. Uma voragem de pesar e desespero na alma de Dmitri.

V. Não foste tu, não foste tu!

Aliócha na casa de Catierina, lá estava Ivan de saída. Catierina diz que Ivan está com febre nervosa, enlouqueceu. Ivan: “Como é que se perde o juízo? Quem está enlouquecendo pode se observar e saber que está ficando louco?” Para Ivan, Lise é uma depravada e está se oferecendo; Catierina odeia Dmitri, Dmitri é um monstro e é o assassino. Aliócha: “Não foste tu, Ivan!”. Novamente a questão da culpa. Smierdiakóv está muito doente, mora no subúrbio com Mária, ex-vizinha de Fiódor.

VI. O primeiro encontro com Smierdiakóv

O enterro de Fiódor aconteceu no quarto dia após o crime. Ivan chegou de Moscou no quinto dia. Ivan não ama Dmitri, sente nojo, desprezo, antipatia. Primeira visita de Ivan à Smierdiakóv que está no hospital, doente, abatido. Smierdiakóv: rosto de eunuco (antes, Dostoiévski já o havia definido como “figura de eunuco”). “Meu irmão te acusa”. Smierdiakóv: “Ora, o que mais lhe resta?”.

Para o narrador, a paixão de Ivan por Catierina é “outro romance que não sei se escreverei um dia”. O autor diz: Catierina “não se sacrificou por inteiro, apesar de toda a impetuosidade karamazoviana dos desejos de seu amado e de todo o encanto que ele exercia sobre ela”. Ou seja, Catierina permitiu alguns “avanços” de Ivan, mas não deu para ele.

VII. A segunda visista a Smierdiakóv

Na casa de Mária, Smierdiakóv está melhor, estuda francês e usa óculos, há um ninho de baratas. Smierdiakóv diz que Ivan “sabia” antecipadamente da morte do pai e que a desejava. Pressentia e viajou, desejava o assassinato. Ivan sente que também matou o pai. Smierdiakóv: “tu vais acabar louco”. Ivan começa a se sentir mal. Ivan e Catierina: inimigos apaixonados. A culpa: Ivan se sente tão assassino quanto Dmitri.

VIII. A terceira e última conversa com Smierdiakóv

O mujique cai na neve, culpa de Ivan, vai congelar. Smierdiakóv: o senhor matou seu pai, eu apenas executei seguindo suas palavras. Mostra os três mil rublos. Matei junto com o senhor, Dmitri é inocente. Ivan: “Detalhes, o principal são os detalhes” (frase muito usada por Dostoiévski de acordo com sua esposa). Smierdiakóv: fui um colaborador secundário. Conta tudo. Fez porque tudo é permitido. Ivan perturbado foge dali; salva o mujique do congelamento. Em casa, Ivan sente que “algo angustiante e asqueroso estava no quarto e já estivera antes”.

IX. O diabo. O pesadelo de Ivan Fiódorovitch

Dostoiévski tentou especificar a doença de Ivan e usou a expressão russa para “delirius tremens”, mas essa condição é causada por abuso de álcool, o que não era o caso. O tradutor optou por colocar “perturbação mental”.

Capítulo muito bom, Ivan conversa com o diabo. Um diabo menor, não o poderosíssimo. No quarto, o diabo como um gentleman russo, um parasita, uma pessoa remediada. “Que sou na Terra senão um parasita?”, diz ele. O anjo caído, mas ele diz não se recordar de ter sido anjo. “Amo sinceramente os homens”. Diz o Diabo que seu sonho é encarnar em uma dona de casa gorda, entrar em uma igreja e acender uma vela de todo coração. Satanás é humano e nada do que é humano lhe é estranho. O diabo diz que há sonhos e pesadelos com cenas e ambientes tão detalhados que “nem Liev Tolstoi conseguiria criá-los”. “Esperas de minha parte algo grandioso, talvez até belo”. O diabo fala do espaço e dos médicos especialistas. Cumpro ordens, desculpa-se. “O sofrimento é que é vida”. Ivan pergunta: “Deus existe ou não?” e o Diabo: “Juro que não sei”. O que temos hoje são mais os tormentos morais. “Só que a própria Terra de hoje talvez já tenha se repetido um bilhão de vezes… O mais indecente dos tédios. Na morte de Jesus, o que teria resultado de meu Hosana? Imediatamente, tudo se teria apagado no mundo e não aconteceria mais nada. (…) Enquanto não me for revelado o segredo, para mim existirão duas verdades: uma de lá, a deles, que por hora ignoro totalmente, e a outra, a minha. E ainda não se sabe qual delas será a mais pura”. A Terra sem Deus de Ivan. Ivan sente algo semelhante à paralisia do sono, tenta se mover e não consegue. Aliócha chega com a notícia: Smierdiakóv enforcou-se.

X. “Foi ele quem disse”

Ivan conta que conversava com o Diabo. Ivan: eu gostaria muito que o diabo fosse realmente “ele”, e não uma criação de sua imaginação. Ivan muito doente, a doença nervosa de Ivan são tormentos, consciência, culpa.

Livro XII: Um erro judiciário

I. O dia fatal

O julgamento. O narrador não vai conseguir relatar tudo: “Farei como sei, e os próprios leitores compreenderão que só fiz como sabia fazer”. Ao verem Grúchenka, as pessoas se admiravam como pai e filho foram se apaixonar por uma russa sem graça e das mais comuns. Dmitri, sua índole se revelava e ele mostrava quem era.

II. Testemunhas perigosas

As testemunhas. O advogado de defesa consegue desacreditar algumas testemunhas, mostrar que elas não têm absoluta certeza sobre o que sabem e o que viram.

III. A perícia médica e uma libra de nozes

O médico local, Herzenstube, detectou anormalidade nas faculdades mentais do réu. O especialista de Moscou disse que o réu sofria de aguda perturbação mental. O terceiro médico, e o mais jovem, disse que o réu era um homem perfeitamente normal. Herzenstube acrescentou que o menino Dmitri vivia praticamente abandonado pelo pai e falou sobre a ocasião em que comprou nozes para o garoto.

IV. A sorte sorri para Mítia

Depoimento de Aliócha, de Catierina, de Grúchenka. Revela-se que Rakítin é primo de Grúchenka e que tem vergonha disso.

V. A catástrofe repentina

Depoimento de Ivan: “todos desejam a morte do pai”. Ivan berra coisas sem nexo, diz que Smierdiakóv matou e mostra os três mil rublos, e é retirado da sala. Catierina, histérica como sempre, mostra carta de Dmitri na qual ele afirma que vai matar o pai. Dmitri: “Catierina, mesmo te odiando, eu te amava, ao passo que tu não me amavas”. Catierina movida pela histeria, vingança, orgulho ferido. Grúchenka: “Dmitri, tua serpente te arruinou”. Uma sempre se refere à outra como cobra. Duas cobras.

VI. O discurso do promotor. Tópicos

O canto do cisne de Hippolit, o promotor, pois morrerá poucos meses depois de tuberculose. O horror e o futuro nada invejável da Rússia. A pergunta essencial que um Karamázov não se faz: “O que haverá além?” Fiódor Karamázov tinha sede de viver, sem ter o lado espiritual. “Après moi, le déluge”. “Que o fogo consuma o mundo inteiro contanto que só eu fique bem”. “A Rússia, somos uns medíocres, somos o bem e o mal numa mistura surpreendente, somos naturezas amplas, karamazovianas”. Um Karamázov mira o abismo acima e abaixo dele.

VII. Um apanhado histórico

O promotor faz um resumo histórico do caso.

VIII. O tratado sobre Smierdiakóv

O promotor fala sobre Smierdiakóv e nega a hipótese de ele ser o assassino.

IX. A psicologia a todo vapor. A troica a galope. Final do discurso do promotor

Um Karamázov sempre vive apenas o presente. Dmitri tem como características o desvario romântico, a suscetibilidade, o descomedimento. Um Karamázov não pensa no que haverá além. A Europa, eles têm os seus Hamlets, já nós temos por enquanto os Karamázov. O castigo é indispensável à alma do criminoso como salvação do desespero. O promotor revisa longamente o caso. O país inteiro quer ouvir o veredito. A Rússia, a troica desenfreada, dirige-se para o abismo. É necessário por freio a esta corrida e preservar a civilização. Comentários sobre o discurso do promotor. Eles, a Europa, não precisam mais da Rússia, compram o trigo na América agora.

X. O discurso da defesa. Uma faca de dois gumes

A defesa rebate as provas e a “psicologia” usada pelo promotor: excesso de psicologia na acusação.

XI. Não houve dinheiro, não houve roubo

Não havia dinheiro, ninguém viu o dinheiro, portanto não houve roubo. Um Karamázov é vasto.

XII. E tampouco houve assassinato

O promotor demonstra como Smierdiakóv pode ter sido o assassino.

XIII. Adúltero do pensamento

Continua o discurso da defesa. Há pais e pais. Matar um pai como Fiódor Karamázov nem chega a ser crime.

XIV. Os mujiques se mantiveram firmes

Final emocionante do discurso. As mulheres choravam, alguns homens também. Réplica confusa do promotor. Dmitri fala, agradece ao promotor porque disse coisas sobre Dmitri que nem ele mesmo sabia. Uma da manhã. A defesa está convicta da vitória. “Será que existe a verdade na Rússia?” Veredito: culpado.

Epílogo

I. Projetos para salvar Mítia

Cinco dias depois, Ivan ainda inconsciente, a febre nervosa, abrigado na casa de Catierina. Aliócha discute com Catierina os planos de fuga. Catierina: “tenho uma índole horrível”. A pena fora de vinte anos de trabalhos forçados.

II. Por um minuto a mentira se fez verdade

Aliócha com Dmitri no hospital, uma febre nervosa, a sala era vigiada e tinha grades. Plano de fuga: ir para a América com Grúchenka, lavrar a terra, começar de novo, aprender inglês, voltar para a Rússia como americano. “Já estou com ódio dessa América”. Lavrar a terra: pois sim, dois vagabundos como Dmitri e Grúchenka! Sonho romântico. Catierina chega, mais um cena exagerada: pronunciam-se mentiras sinceras. Grúchenka chega, raiva feroz entre as duas cobras.

III. Os funerais de Iliúchetchka. O discurso junto à pedra

O funeral de Iliúcha, o pequeno drama familiar, o caixãozinho e os meninos, discurso final de Aliócha aos meninos.

Os irmãos Karamázov, Fiódor Dostoiévski, 1880

Releitura de Os irmãos Karamázov. Fiz esta releitura em dezenove dias. É certo que há milhares de páginas escritas sobre esta obra. Meu comentário não vai acrescentar nada de original. O livro é imprescindível e prende o leitor do começo ao final. Há um grande número de discussões, ideias e frases relevantes. As grandes questões humanas – e dostoievskianas – são ali discutidas: culpa, crime, castigo, a existência de Deus, a vida além, a imortalidade, o inferno, o diabo, as paixões, a lascívia, a religião. Uma obra que não se pode deixar de ler, se alguém tem interesse em literatura de verdade. Todavia, não gosto do livro. Li, reli e releria mais uma vez. A obra proporciona prazer literário ao leitor. Não gostar do livro é um fenômeno à parte da qualidade da obra. As características do livro que me fazem não gostar são:

– Não há nenhum personagem com o qual eu possa estabelecer uma empatia. Aliócha, um santarrão, tão bondoso e excessivamente ingênuo que chega a ser falso. Fiódor, o pai, lascivo, avarento e divertido, talvez o personagem mais credível e interessante. Dmitri, lascivo, bêbado, cheio de ira, truncado, grosseiro. Ivan, um filósofo indeciso, fraco, idealista, sem coragem de viver de acordo com suas ideias. Smierdiakóv, personagem interessante mas do qual pouco saberemos, inteligente, amargurado, vingativo.

– As mulheres: todas as mulheres da obra são histéricas, descontroladas, exageradas, tediosas.

– Falhas na composição do romance: Dostoievski pensava em escrever a continuação que trataria especificamente do “seu herói”, Aliócha. Entretanto, como o tal livro não foi escrito, muitos trechos da obra são desnecessários à trama do romance. Toda a parte de Aliócha no mosteiro e tudo relacionado com o monge Zossima, toda a parte de Aliócha com os meninos, Aliócha com Lise, tudo isso pode ser ignorado, são histórias paralelas, não interferem na evolução da trama.

Enfim, um livro fundamental mas irregular e desagradável.

A edição da Editora 34, com tradução de Paulo Bezerra é excelente.

Discordância Dostoiévski

The Guardian. Um cliente atirou e matou um garçom em uma pizzaria no subúrbio de Paris. Aparentemente, o cliente estava enraivecido porque esperou muito por seu sanduíche. Noisy-le-Grand, 15 km a leste de Paris, sexta-feira, 16 de agosto. O garçom contava vinte e oito anos. O atirador fugiu. A polícia abriu uma investigação. O inferno é aqui, contrariamente ao que diz Dostoiévski.

Garços

Anotações. Encontro em Machado: olhos garços. Garço: esverdeado, verde, verde-azulado. Eludir: evitar de modo astucioso. Envolvido na releitura do Karamázov, fazendo curtas anotações, publicarei um resumo aqui. Quase tudo que leio, faço um resumo, assim apreendo o lido, só assim, talvez. A releitura do Karamázov, como tantos já disseram sobre reler, é outro livro, quem lê é outra pessoa e por aí vai. Antes de publicar minhas notas sobre o Karamázov, dois volumes da 34, vai essa:

Ivan conta, acessoriamente, sobre uma representação ou poema que havia na Rússia. A virgem é conduzida ao inferno pelo arcanjo Miguel, como Dante na Comédia, e vê o sofrimento dos condenados. Há, inclusive, um lago de fogo: aqueles que não conseguem flutuar no lago e afundam são esquecidos até por Deus (como se Deus, existindo, alcançasse a dádiva do esquecimento). A virgem pede a Deus que perdoe a todos os pecadores, Deus nega, a virgem pede então a todos os santos que rezem com ela pelo perdão dos pecadores e por fim ela obtém de Deus a cessação dos tormentos entre a sexta-feira santa e o dia de Pentecostes. Ou seja, durante cinquenta e dois dias os condenados obtêm um alívio. E os condenados ainda agradecem ao Senhor. Cinquenta dias de licença e depois trezentos e tantos de fogo e suplício, sei não se é o caso de agradecer. E durante aqueles cinquenta dias o que fariam os condenados? O inferno ficaria fechado? Os condenados em animação suspensa?

O inseto

O inseto. Na edição da Editora 34 de “Os irmãos Karamázov”, o tema do inseto surge quando o narrador define Fiódor Karamázov, o pai, como “um inseto pernicioso”. Posteriormente, Dmitri, o primogênito, cita um poema em que um dos versos diz: “aos insetos, a lascívia”. E Dmitri acrescenta: “eu sou esse mesmo inseto, não sou um inseto perverso?” Mais adiante, Dmitri afirma que o inseto cresceu dentro dele, tomou corpo em sua alma. Kafka, que se considerava irmão espiritual de Dostoiévski, deve ter sublinhado estes trechos em seu volume.

The Lolita Workout

121. Quando Humbert fala em “a completely anesthetized little nude”, pensei em “A casa das belas adormecidas” de Yasunari Kawabata (1961). Lolita é de 1955. Imagino um grande gráfico, é deveria ser uma representação visual, no qual o círculo contendo esta frase de Nabokov seria ligado por uma flecha com o círculo contendo o nome do romance de Kawabata. O círculo contendo as frases de Dmitri Karamázov sobre o inseto se ligaria com o círculo de A metamorfose. Alguém já deve ter feito esse gráfico.

Narrador traidor

O narrador é confiável? O narrador, não se pode confiar no narrador. Entretanto, nós, leitores humildes, tendemos a acreditar no narrador. Muita vez, o narrador não é o autor. Será que alguma vez o narrador é verdadeiramente o autor? Mas todos os personagens são o autor, uma faceta do autor, um algo do autor que dele se desprendeu e nasceu para um vida independente. O autor não existe, existe o autor?

Em Karamázov, o narrador é alguém daquela vila onde transcorrem os acontecimentos. Mas antes de entrar o narrador – que é um personagem, visto sabermos que Fiódor Dostoiévski não mora nem morou em uma cidadezinha que tem um mosteiro, etc, etc, como ele mesmo gosta de usar tantas vezes – repito, antes de entrar o narrador, o autor fala conosco: um preâmbulo que Dostoiévski denominou “Do autor”, no qual ele expõe algumas de suas dúvidas acerca da história e de Aliócha. Esse autor é confiável? Como pode ser se nos expõe suas dúvidas?

Portanto, há um narrador e há um autor, Dostoiévski faz a divisão logo no início. E o narrador, não totalmente confiável, pois narra diálogos dos quais não participou, destaca intensamente a pusilanimidade de Fiódor Karamázov. Entretanto, mais umas páginas e percebe-se um Karamázov até divertido.

Em Lolita, temos a capa com o nome do autor, Nabokov, um prefácio, assinado por um tal John Ray Jr, phd, no qual este Ray assevera que recebeu o manuscrito por meio do advogado do autor, Humbert Humbert. Este narrador, Humbert Humbert, extremamente sedutor, ambíguo, viperino, conta a história e seduz e ludibria o leitor, o qual é obrigado a permanecer alerta contra as falsificações do narrador.