Anti-herói de Svevo faz refletir sobre literatura

LAURA ERBER

ESPECIAL PARA A FOLHA de São Paulo

04/08/2017 02h01

UMA GOZAÇÃO BEM-SUCEDIDA (ótimo) 
AUTOR Italo Svevo
TRADUÇÃO Davi Pessoa
EDITORA Carambaia
QUANTO R$ 49,90 (224 págs.)

Na sequência do rebaixamento do herói e da literatura como estoque de modelos de conduta, nossa modernidade viu surgir uma família de antiprotagonistas, figuras do insucesso, da improdutividade e do apagamento de si.

Todos eles arrastam ainda a sombra de algo que havia emergido no jovem Werther e na sensibilidade romântica que enfatizou o escritor que não escrevia, o músico que não compunha. São parte do culto da atitude e do espírito artísticos, afirmando a importância da sensibilidade criativa sobre a obra produzida.

Nesse rol se inscreve Mario Samigli, o escritor-funcionário, anônimo e ambicioso, ingênuo e lúcido, frustrado e realizado na sua insignificância, protagonista de “Uma Gozação Bem-Sucedida”. O conto é de 1926 e se desenvolve em torno de um homem comum e sua talvez pueril, mas tenaz, fantasia de escritor.

Sua ambição e sua perseverança literária tornam-se motivo de gozação por parte de um caixeiro-viajante conhecido pelo talento para pregar peças. Esse inimigo, Gaia, convence Mario a vender um manuscrito há décadas encalhado a um editor.

O choque entre a malandragem do gozador e a aparente ingenuidade de Mario permitem a Svevo desenvolver uma série de considerações sobre talento, reconhecimento, engano e orgulho.

Maliciosamente, Svevo nunca chega a desfazer a ambiguidade da figura de Mario, e ficamos sem saber se este, caso existisse, teria sido um tesouro escondido da literatura moderna ou apenas um medíocre funcionário a dramatizar suas aspirações estéticas.

As críticas do narrador ao que seria considerado um literato e um escritor de sucesso expressam bem o conflito de Svevo –que passou mais de 20 anos sem escrever– em relação à crítica e ao sistema literário italiano da época.

Uma definição de fama literária dada no livro deixa clara a visão pouco condescendente do autor sobre o assunto: “Para que a fama chegue, de fato, não basta que o escritor a mereça. É necessária a confluência de um ou tantos outros quereres que possam influir sobre os inertes, aqueles que depois leem o que os primeiros escolheram”.

A intimidade de Svevo com os problemas do protagonista lhe permitem elaborar um tom narrativo elástico, indo do gracioso ao autoirônico deste ao soturno, transitando com aparente despretensão pelos temas abordados.

Mais de uma vez a crítica acusou Svevo de ser um “mau escritor”, flagrado em barbáries estilísticas e “descarrilamento gramatical”. O uso um pouco deslocado do italiano foi utilizado de forma negativa pela crítica de gosto ainda influenciado pela noção clássica de literariedade.

Svevo não tinha efetivamente intimidade com o italiano, tendo por idiomas o alemão e o dialeto triestino. Por isso, sua relação com a língua reflete-se em desafios para a tradução.

O conto é uma ótima oportunidade para ampliar o espectro de compreensão do autor triestino, que, além de ter explorado pioneiramente a relação entre psicanálise e literatura, desenvolveu uma relação tensa e desestabilizadora com o idioma italiano.

O leitor aqui terá a chance de percorrer essa narrativa por uma tradução muito sensível que nos restitui a sensação de estranho-familiar em que Svevo converteu a língua.

Italo Svevo, Una burla riuscita, 1926, primeiro parágrafo

Italo Svevo, Una burla riuscita, 1926, primeiro parágrafo.

“Mario Samigli era un letterato quasi sessantenne. Un romanzo ch’egli aveva pubblicato quarant’anni prima, si sarebbe potuto considerare morto se a questo mondo sapessero morire anche le cose che non furono mai vive. Scolorito e un po’ indebolito, Mario, invece, continuò a vivere per tanti anni di certa vita lemme lemme com’era consentita da un impieguccio che gli dava non molti fastidi e un piccolissimo reddito. Una tale vita è igienica e si fa ancora più sana se, come avveniva da Mario, è condita da qualche bel sogno. Alla sua età egli continuava a considerarsi destinato alla gloria, non per quello che aveva fatto né per quello che sperava di poter fare, ma così, perché un’inerzia grande, quella stessa che gl’impediva ogni ribellione alla sua sorte, lo tratteneva dal faticoso lavoro di distruggere la convinzione che s’era formata nell’animo suo tanti anni prima. Ma così finiva coll’essere dimostrato che anche la potenza del destino ha un limite. La vita aveva rotto a Mario qualche osso, ma gli aveva lasciati intatti gli organi più importanti, la stima di se stesso, e anche un po’ quella degli altri, dai quali certo la gloria dipende. Egli attraversava la sua triste vita accompagnato sempre da un sentimento di soddisfazione.”