Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Italo Calvino

Os dois últimos contos selecionados por Calvino. 

Os construtores de pontes, Rudyard Kipling, 1898. Não gostei. Conto longo e tedioso. Na Índia, um engenheiro britânico é arrastado pela enchente do rio no qual finalizava a construção de uma ponte. Ele vai parar em uma ilha e, durante a noite da cheia, os deuses hindus se reúnem e debatem a cultura e a religião local.

Em terra de cego, Herbert George Wells, 1899. Tenho a impressão de que Saramago deve ter se inspirado neste conto para o Ensaio sobre a cegueira, todavia se contrapondo ao conceito do conto de H. G. Wells. Para Wells, em terra de cego, quem vê enfrenta dificuldades. Já Saramago mostra que a mulher do médico – a única que resta com visão – tem grande vantagem lá no confinamento dos cegos. No conto de Wells, um explorador encontra um vale perdido e inacessível, no qual existe uma aldeia de cegos. Os habitantes, provenientes de muitas gerações de cegos, desconhecem o que significa “ver”, inclusive desconhecem as palavras “ver”, “visão”, “cego”. O explorador imagina que se tornará o governante daquelas pessoas, porém diversas vezes os cegos são mais ágeis e espertos do que ele. Por fim, os cegos tentam “curar” o explorador de seu defeito, por meio de uma cirurgia para extrair aqueles corpos que ele tem no rosto, entretanto o homem foge para sempre do vale dos cegos. Na minha opinião, Saramago estava com a razão e a visão da mulher do médico é essencial para a sobrevivência do grupo de cegos que ela integra.

Karamázov

433608. Leonardo desligou o despertador e ainda teve um curto sonho de três minutos, pareceu longo. Fez café, leu notícias no Guardian, olhou as partidas de xadrez mas não fez lances, uma coisa aqui outra ali, chovia lá fora, organizou roupas e livro, mochila. Desceu, bicicleta mais velha para dias molhados, não chovia, escritório frio com ar-condicionado e chuviscos e nuvens sobre a cidade.

Na noite anterior, folheou e leu páginas avulsas, o jornal de literatura, um pouco dos contos escolhidos por Italo Calvino, um pouco de Os irmãos Karamázov, Fiódor Dostoiévski. Revisitava a história dos Karamázov, tentava entender o motivo de não ter gostado do livro. Não há um único personagem com o qual ele tenha empatia. Aliócha, um ingênuo, um tolinho. Os outros todos uns imprestáveis. Não é um mau livro. Confuso, entrecortado, muitas histórias em um volume, muitas brigas, incompreensão e bebedeira. Talvez a alma russa da época. Dostoiévski sempre angustiado com o cristianismo-catolicismo. O capítulo famoso do inquisidor é uma interpretação particular de Dostoiévski acerca do episódio de Jesus no deserto com o diabo, as tentações. Mesmo sem ser cristão ou crente, ele não concorda com a visão do autor. Todavia, há interesse em muitos trechos do monólogo do jesuíta. Sim, é um livro indispensável. O episódio das crianças e o cão, o episódio do corpo do monge que começa a feder logo depois da morte.

A parca biblioteca dele não merece ser chamada de biblioteca. Nem sabe quanto volumes estão ali, no armário de portas fechadas. Livro exposto em prateleiras é tão bonito mas junta tanta poeira. Em armário fechado, livro fica bem mais limpinho. Ele abriu as portas dos armários para encontrar o Karamázov e observou que havia tantos bons livros ali, tantos que mereciam ser relidos. Se um livro não merece ser relido, é melhor botar fora, dar, vender, deixar no banco da praça. Poderia passar os poucos dias que lhe restam apenas relendo. Se houvesse outras vidas, não há, mas se houvesse, seria bom para reler e ler tudo o que faltou ler. O não-ser é uma bênção, todavia. 

Os amigos dos amigos, Henry James

Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Italo Calvino.

Os amigos dos amigos, Henry James, 1896. Este foi o conto do qual mais gostei porque o fantástico aqui é prosaico, dispensa adereços e fogos de artifício, além disso escrito com a maestria de James.

Uma moça está viajando, longe de seu país. Ela visita um museu e, em uma das salas, há um homem sentado. Ela não presta atenção nele, mas logo tem a surpresa: é o pai dela que está ali. Ela corre na direção dele, perguntando o que houve, e o pai desaparece. Horas depois, ela recebe a comunicação de que o pai morreu naquela manhã. Um rapaz está na universidade, longe de sua cidade natal. Certo dia, volta para o alojamento e vê sua mãe esperando por ele na porta do quarto. A mãe sorri para ele e abre os braços. Quando o jovem vai abraçá-la, ela desaparece. Na manhã seguinte, o rapaz recebe a notícia da morte da mãe.

Aquela moça e este rapaz, alguns anos depois, têm vários amigos em comum e que conhecem as experiências de ambos. Os amigos tentam por diversas vezes realizar um encontro entre os dois e nunca conseguem. Os acontecimentos conspiram para que eles nunca se conheçam. Ambos mostram-se dispostos ao encontro mas o tempo passa e não chegam a se conhecer. Outra semelhança entre eles é que ambos evitavam ser fotografados, detestavam fotografias e, assim, não podiam se conhecer nem mesmo por imagens.

Enfim, ele estava para casar, a noiva era uma amiga de longa data que conhecia a ambos e que já havia tentado reuni-los. A noiva pediu, como presente de noivado, que fosse marcado um encontro na casa dela para romper o “feitiço”. O encontro foi marcado. A mulher tentou recusar, disse que, depois de tanto tempo, sentia um “medo extraordinário” desse encontro. A noiva não aceitou desculpas e ficou tudo acertado para o final de semana.

Todavia, a noiva principiou a ficar com ciúme do encontro que ela própria marcara: e se eles, os dois “videntes” fôssem destinados um ao outro? E se eles se apaixonassem? Sendo assim, a noiva fez confundir os horários de modo que a mulher e o noivo estivessem na casa da noiva em horários diferentes e não se encontrassem. No dia seguinte, arrependida do artifício, a noiva foi até a casa da mulher para se desculpar e contar a artimanha. Em vão: a mulher havia morrido durante a noite. A noiva foi à casa do noivo comunicar a morte da mulher. Impossível, diz o noivo, porque na mesma noite ela esteve aqui para me visitar. A mulher não bateu na porta, apenas entrou na sala, o homem compreendeu quem ela era, ela fez sinal de silêncio e eles apenas ficaram se olhando por muito tempo.

Pouco tempo depois, o noivado termina: a noiva percebe aquilo que o homem busca esconder. “Você a vê – você a vê, você a vê todas as noites!”, diz a ex-noiva, “Você a ama como nunca amou e, paixão por paixão, ela devolve com inteira reciprocidade!”. A moça nunca casou, o homem nunca casou. Poucos anos depois, ele teve uma morte súbita, sem que se soubesse a causa, “foi uma resposta a um chamado irresistível”.

Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Italo Calvino

Chickamauga, Ambroise Bierce, 1891. Não é um conto fantástico. É a descrição do campo de batalha de Chickamauga na Guerra de Secessão visto por meio de uma criança de seis anos que fugiu de casa.

Os buracos da máscara, Jean Lorrain, 1900. É aquele tipo de história de que não gosto: depois de todas as peripécias, descobre-se que era um sonho. Assim é fácil. Um homem está esperando o amigo para ir a um baile de carnaval. O amigo chega mascarado e eles seguem para o local da festa. Todos de máscara, o ambiente cada vez mais estranho e assustador, então as pessoas começam a tirar as máscaras e, por baixo, não há nada. O narrador tira sua máscara e também ele é um vazio, está morto. Então acorda com o amigo chegando para buscá-lo. Era um sonho.

O demônio da garrafa, Robert Louis Stevenson, 1893. Este um dos melhores da coleção. A história se passa no Havaí e outras ilhas do Pacífico. Há um demônio em uma garrafa e este atende os desejos do dono da garrafa. A garrafa, inclusive, pertenceu a Napoleão. Mas há dois inconvenientes: 1 – se alguém morrer possuindo a garrafa “vai queimar no inferno” e 2 – a garrafa não pode ser dada ou abandonada, só pode ser vendida e sempre por um valor menor do que aquele pelo qual foi comprada. Acontecem diversas idas e vindas na história e a garrafa, cada vez mais barata, termina nas mãos de um casal amoroso que se vê em dificuldades para passar a garrafa adiante.

Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Italo Calvino

Amour Dure, Vernon Lee, pseudônimo de Violetta Paget, 1890. Um conto em forma de diário, que transcorre em uma pequena cidade italiana, no qual um pesquisador alemão se apaixona pela personagem que estudava: uma mulher, Medea da Carpi, uma femme fatale ou uma feiticeira, que vivera no século XVI, cujos cinco amantes findaram tragicamente mortos. Medea era uma mulher perigosíssima que seduzia e controlava os homens em busca de poder e riqueza.

Sua queda se dá quando o duque Roberto II, que havia sido cardeal, cerca e domina a cidade dela, e prende Medea em uma ala de seu castelo. O duque recusa-se a encontrar com Medea, sabedor de seu poder de sedução e, após dois atentados à vida dele, patrocinados por ela, ordena que duas mulheres a estrangulem. Essas mulheres eram criminosas que tiveram suas penas anuladas pelo duque. Com medo dos poderes sobrenaturais de Medea, o duque Roberto solicita a um astrólogo um artifício para prender a alma da mulher em uma imagem de prata que restará escondida dentro de uma estátua de bronze do próprio Roberto.

Pois o pesquisador alemão apaixona-se por aquela Medea, por seu retrato em pinturas da época, pela letra dela em cartas. Chega a vê-la andando nas ruas de madrugada. Recebe então um bilhete de Medea da Carpi pedindo que a liberte sua alma, cortando a estátua e quebrando a efígie de prata. O pesquisador apaixonado executa a libertação durante a madrugada do Natal e aparece morto com um punhal no coração junto à estátua que cortou para libertar Medea.

Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Italo Calvino

O espanta-diabo, Nikolai Semionovitch Leskov, 1879. Não gostei. Um conto confuso, cheio de pequenos acontecimentos, mas que se resume a dois pontos: um homem rico de Moscou prepara e participa de uma imensa farra e depois faz um ritual de contrição e arrependimento em um convento. Não tem elementos fantásticos.

É de confundir!, Auguste Villiers de L’Isle-Adam, 1883. Conto curto no qual o autor descreve quase com as mesmas palavras um necrotério e um café. Não tem elementos fantásticos.

A noite, Guy de Maupassant, 1887. Não dos melhores. Descreve um passeio pela noite de Paris e, gradativamente, a cidade vai se tornando mais deserta, mais “aterrorizante”, como se o personagem fosse a única pessoa que sobrava em um mundo que se desfazia.

Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Italo Calvino

O sonho, Ivan Segueievitch Turguêniev, 1876. Um bom conto. É a história de um estupro, revestida de uns poucos elementos fantásticos. Na viagem de núpcias, um casal vai para a capital. A moça é bela e admirada pelos homens por onde o casal passa. Certa noite, a moça fica no hotel e o marido vai a uma recepção no clube de oficiais para a qual fora convidado. Um dos oficiais, todavia, invade o quarto do hotel e estupra a moça. O marido a encontra horas mais tarde, atordoada, confusa. Voltam para o campo onde morava. A moça torna-se mãe, mas “a felicidade de antes tinha desaparecido, a vida deles ficou escura”. O marido morre anos depois. Na idade adulta, o filho tem sonhos em que se encontra com o pai, mas o pai do sonho não é aquele que conhecera em vida.

Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Italo Calvino

A sombra, Hans Christian Andersen, 1847. Este é um conto sobre o duplo. Não gosto deste conto desde a infância, pois ele estava incluído na minha coleção de Contos de Andersen, e eu-criança achava a história muito tenebrosa e inexplicável. Um homem brinca com sua sombra, ela se projeta na parede da casa em frente, e o homem faz com que a sombra “entre” por uma porta da casa. A sombra entra e não volta, o homem fica sem sombra. Anos depois, ele encontra sua sombra vivendo uma vida normal, não percebem que ela não é um homem. A sombra convida o homem a viajar com ela, fazendo o papel de sombra da sombra. Por fim, a sombra destrói a vida de seu antigo dono.

O sinaleiro, Charles Dickens, 1866. Conto curto de Dickens e tradicional, eu diria, no tema das histórias de fantasmas. Um homem que trabalha em uma ferrovia vê um fantasma, por duas ou três vezes, que aparece na entrada de um túnel da estrada de ferro. O fantasma faz sinais de pesar e desespero e, cada vez que o fantasma aparece, acontece algum incidente fatal na ferrovia.

Os duplos em O Homem de Areia

Ainda sobre o conto O Homem de Areia, de Hoffmann, é relevante destacar os duplos que o autor incorporou ao enredo. Clara, uma moça que ama Natanael, o personagem central, é uma mulher racional, serena e tranquila. Quando Clara adverte Natanael que os temores deste em relação ao Homem de Areia são “internos”, gerados pela imaginação dele, Natanael a ofende e a chama de “autômato”. Natanael, como sabemos, vai se apaixonar justamente por um autômato real, uma boneca de madeira, Olimpia. Penso que Hoffmann, de forma sutil, nos mostra que Clara é o verdadeiro e perfeito autômato, racional, serena, tranquila, feliz. “(…) muitos a consideravam fria, insensível e prosaica”. Tão perfeita que sua natureza artificial nunca é descoberta. Spallanzani, o cientista que construiu Olimpia, tem o mesmo nome de Spallanzani, o famoso naturalista. O próprio Hoffmann aponta a coincidência de nomes, para destacar a oposição entre o artificialista e o naturalista. Por fim, o advogado Coppelius, o primeiro a amedrontar Natanael na infância, é substituído por seu semelhante, o vendedor Coppola, tão parecido com Coppelius que deixa atordoado o jovem Natanael. 

Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Italo Calvino

O coração denunciador, Edgar Allan Poe, 1843. Calvino considera este conto a obra-prima de Poe. É um conto curto e que me fez pensar em “Crime e castigo”, de Dostoiévski (1866). No conto de Poe, o personagem decide matar um velho sem motivo aparente: “Ele nunca me insultara. Ele nunca me fizera mal. Pelo ouro dele eu não nutria desejo.” O assassino declara que não está louco e que, talvez, tenha sido o olho do velho, um olho de abutre, que tenha despertado nele o desejo de matar. Não se revela qual a relação entre o velho e o assassino, talvez um parente ou apenas um criado. O homem entra no quarto do velho todas as noites, planejando o crime. Na noite decisiva, no escuro absoluto, sabe que o velho está acordado, ouve as batidas aceleradas do coração do velho, o velho sabe que chegou sua hora. Após cometer o crime e desmembrar o corpo, o assassino coloca os pedaços sob as tábuas do quarto. No dia seguinte, recebe a visita de policiais, houve uma denúncia de um grito na noite. O assassino está calmo e os policiais de nada desconfiam. Todavia, o assassino vai gradativamente se desesperando porque imagina continuar a ouvir as batidas do coração do velho sob o assoalho. Os policiais não ouvem nada. “Miseráveis!, guinchei, parem de disfarçar! Eu confesso o crime! Arranquem as tábuas! Aqui, aqui! – são as batidas do horrendo coração dele!”