O livro do juízo final, Connie Willis, 1992

O livro do juízo final, Connie Willis, 1992, 576 páginas, tradução de Braulio Tavares.

Encontrei uma breve citação deste livro no blog de Braulio Tavares, então fui lê-lo. Apesar de tratar de um tema que gosto, viagens no tempo, quase detestei o livro. Conta-se a história de uma jovem historiadora que viaja no tempo, algo comum na época futura em que ela vive. A historiadora tem interesse na Idade Média e vai viajar para um determinado ano antes da Peste Negra dizimar boa parte da população da Europa. Por um erro no momento de ser enviada ao passado, a jovem cai exatamente no ano em que a Peste chegou à Inglaterra. Ela é abrigada por uma família em um vilarejo e se apega em especial às crianças. Essa é a parte melhor do livro. Na origem, no tempo em que ela foi enviada, demoram a perceber que houve um erro, há uma epidemia de gripe acontecendo e a história se arrasta. Cenas repetidas e personagens insossos. Mesmo na parte da Idade Média, a história não empolga. Para mim, perda de tempo. Nota 1 de cinco.

Tudo o que nunca contei, Celeste Ng, 2014

Tudo o que nunca contei, Celeste Ng, 2014, 304 páginas, Intrínseca, tradução de Júlia Sobral Campos.

Este é o que chamo de livro redondinho. Como em Elena Ferrante, a autora quer contar a história e fazer com que saibamos de quase todos os acontecimentos. E essa moça, Celeste Ng, fez os cursos de escrita direitinho, ou seja, ela sabe usar os recursos (ou truques) literários para prender e interessar o leitor. Veja-se que o romance começa por declarar que Lydia, uma menina de quinze ou dezesseis anos está morta, enquanto a família e a polícia começam a procurar por ela. Daí em diante, entre idas e vindas temporais, a autora nos conta como tudo que cerca aquela família culminou com a morte da menina. Há, vez ou outra, um excesso de sentimentalismo, mas não compromete. Não ficam pontas soltas ou personagens desperdiçados. Nota três de cinco.

Trechos:

Lydia está morta. Mas eles ainda não sabem disso. Dia 3 de maio de 1977, seis e meia da manhã, ninguém sabe nada a não ser por este fato inofensivo: Lydia está atrasada para o café da manhã.

Então, em vez de Harvard, uma proposta, enfim, da humilde Middlewood College, que foi aceita com alívio. Em vez de Boston, uma cidadezinha em Ohio. Em vez da faculdade de medicina, um casamento. Nada como fora planejado.

Você pode voltar e terminar esse último ano quando o bebê estiver maior. Levaria quase oito anos até que os estudos parecessem reais, possíveis e tangíveis outra vez, mas Marilyn não sabia disso.

James não consegue encontrar uma forma de lhe dizer o que descobriu ao identificar o corpo de Lydia: só resta metade do rosto, mal preservada pela água fria do lago; metade foi corroída.

Estava triste? Estava com raiva. Furiosa com a pequenez da vida de sua mãe. Isso, pensou ferozmente, tocando a capa do livro de receitas. Isso basta para me lembrar dela. É tudo que quero guardar.

Eu poderia ter feito isso, pensou Marilyn, e as palavras se encaixaram feito peças de um quebra-cabeça, chocando-a com sua precisão. O futuro do pretérito, o tempo verbal das oportunidades perdidas.

Marilyn ficou sentada por um bom tempo, segurando a caneta esferográfica, sem saber como terminar. Acabou rasgando o bilhete e jogando os pedaços no lixo. Decidiu que era melhor simplesmente partir. Desaparecer da vida deles como se nunca tivesse estado ali.

Ao contrário de certas pessoas, eu não fico bajulando a polícia. No calor da fúria, Marilyn não pensa duas vezes no que diz. Já para James, a expressão sai da boca da mulher feito um tiro que se aloja no fundo de seu peito.

Ele ensaiou o que diria a Louisa tantas vezes que acordou naquela manhã com as palavras nos lábios. Foi um erro. Eu amo a minha mulher. Isso não pode voltar a acontecer. Agora, quando ela abre a porta, o que sai de sua boca é:

“Ela mal fez dezesseis anos.” Agora, olha para as duas caixinhas, presas na prega da sua saia, e os contornos da vida de Lydia — antes tão claros e definidos — começam a ondular.

Na primeira vez, doía tanto que seus olhos lacrimejavam. Na segunda, doía um pouco menos. Na décima vez, mal podia ser considerado dor. Portanto, ele lia e relia o bilhete.

Ele nunca tinha batido em Nath, e nunca mais voltaria a fazê-lo. Mas algo entre eles já tinha sido rompido. Nath saiu rapidamente dali com a mão na bochecha, seguido por Lydia, (…)

Já Marilyn dizia a si mesma todas as vezes que desligava o telefone que aquela seria a última ligação, que não voltaria a ligar, que aquilo provava que sua família estava bem, que ela tinha começado uma nova vida. Dizia isso a si mesma com tanta firmeza que acreditava plenamente, até que se via outra vez discando o número de casa.

Seu grande plano durara nove semanas. Tudo com que sonhara para si desapareceu, como uma névoa fina na brisa. Ela já não lembrava por que achara que aquilo tudo seria possível. É isso, Marilyn disse a si mesma. Supere. É isso que você tem. Aceite.

Agora Lydia encarava o pai, que sorria para ela alegremente, como que orgulhoso por saber tanto sobre suas amigas, de lembrar seus nomes. Um cachorro, pensou ela, esperando um biscoito.

À tarde, ele acaba no apartamento de Louisa, mergulhando em seus braços, então entre suas pernas, onde felizmente sua cabeça se desliga.

Fora do carro, que tem o ar carregado do cheiro de escapamento e graxa, James percebe que dá para sentir o perfume de Louisa em sua pele, almiscarado, picante e doce. Ele se pergunta se Nath também sente.

Antes ainda: naquele primeiro dia, quando ela se debruçou na mesa dele e o beijou, tirando seu fôlego feito um soco repentino e ágil. Milhões de pequenas chances de mudar o futuro. Eles nunca deveriam ter se casado.

É o tipo de coisa que todo homem diz para a amante, mas para ele aquilo é uma revelação. Semiadormecida nos braços dele, Louisa não ouve, mas as palavras serpenteiam em seus ouvidos, dando-lhe os sonhos emaranhados de todas as outras outras. Ele vai deixá-la… vai se casar comigo… vou fazê-lo feliz… não haverá nenhuma outra mulher.

Marilyn a examina cuidadosamente. Cabelo longo cor de nanquim, longos cílios sobre olhos voltados para baixo, a boca pequena, feito a de uma boneca. Uma coisinha tímida. Tão diferente de mim, pensa com uma pontada, quanto uma garota pode ser.

Marilyn espera, deixa que Louisa se inquiete. Suas mãos pararam de tremer. Por dentro, ela sente uma raiva silenciosa e fumegante.

Ainda olhando para o tapete, Marilyn comprime os lábios. — Ela é muito nova. Quantos anos tem? Vinte e dois? Vinte e três? — Marilyn. Pare com isso. Marilyn não para.

As pessoas amam tão intensamente e têm tantas expectativas para depois acabarem sem nada. Filhos que já não precisavam de você. Um marido que já não queria você. Não resta nada além de você, sozinha, e um espaço vazio.

Finalmente disse o que mais temia, o que ela mais queria ouvir: Finja que você nunca me conheceu. Que nada disso aconteceu. Ele desfez o maior erro da vida dela. Só que — e ele não pode negar, por mais que tente — Marilyn não pareceu agradecida. Ela recuou, como se ele tivesse cuspido em seu rosto.

Tudo que parecera tão imenso de perto — a escola, seus pais, suas vidas —, bastava se afastar para que encolhesse e desaparecesse. Dava para parar de atender aos telefonemas, rasgar as cartas, fingir que eles nunca haviam existido. Recomeçar como uma nova pessoa com uma vida nova.

(…) o grito de Lydia, o tom estridente de sua voz. Aquilo desapareceria da lembrança que guardaria de Lydia, do jeito que as lembranças que guardamos das pessoas amadas sempre se suavizam e se simplificam, perdendo complexidade como se fossem escamas.

Eles vão dissecar essa última noite durante anos a fio. O que passou despercebido que deveriam ter notado? Que pequeno gesto, esquecido, poderia ter mudado tudo? Vão analisar os mais ínfimos detalhes, perguntando-se como aquilo tudo dera tão errado, e nunca terão certeza de nada.

Vulgo Grace, Margaret Atwood, 1996

Vulgo Grace, Margaret Atwood, 1996, 512 páginas, Rocco, tradução de Geni Hirata.

Margaret Atwood escreveu essa ficção com base em um crime real acontecido no Canadá no século XIX. Uma menina de dezesseis anos, empregada de um pequeno sítio, e o caseiro mataram a governanta e o patrão. Fugiram para os Estados Unidos e foram  presos dias depois. Ele foi condenado à morte e enforcado. Para ela, o advogado conseguiu reduzir a pena para prisão perpétua com base na pouca idade da moça. A história de Atwood é boa e prende o leitor mas tem muitas pontas soltas. A história parece que vai deslanchar com o médico psiquiatra Simon, ou com o mascate Jeremias, mas ali só há becos sem saída. Acerca do psiquiatra Simon, achei muito curioso que o personagem tem como objetivo criar um instituto onde os loucos sejam tratados mais humanamente, contudo em seus pensamentos iniciais, Simon começa a acreditar que todos ao seu redor são um pouco loucos. O nome Simon e esse detalhe me fazem pensar que Atwood poderia ter conhecido a obra de Machado de Assis, O alienista, e seu famoso personagem Simão Bacamarte. Acerca de Grace, gostamos dela, sentimos muita pena dela, mas não conseguimos saber quem ela é realmente. Enfim, é um livro interessante, não me agradou de todo, não dá respostas ou certezas suficientes ao leitor. Infelizmente, prefiro livros redondinhos. Nota três de cinco.

Pureza, Jonathan Franzen, 2016

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Pureza, Jonathan Franzen, 2016, 616 páginas, Companhia das Letras, tradução de Jorio Dauster.

Pureza é o livro mais fraco dentre aqueles que li de Franzen. Extenso, seiscentas páginas, contudo irregular, tedioso. Franzen escreve bem e gostei muito dos anteriores, Liberdade e Correções. Franzen continua escrevendo bem, mas a história não pega, se arrasta, é lenta e confusa. A gente até percebe que o autor tenta juntar as pontas soltas, juntar as diversas histórias, mas a tentativa caminha tão devagar que dá impaciência, e não é bem sucedida.

O romance é composto por sete partes, sete longos capítulos. A primeira parte nos apresenta Pip Tyler, o personagem mais simpático do livro. Pip mora em San Francisco, tem um empreguinho bosta, é pobre, têm dívidas e uma mãe desequilibrada e paranóica. A segunda parte abandona Pip, volta no tempo e conta a história do jovem Andreas Wolf, na Alemanha Oriental. A terceira parte apresenta Leila, uma jornalista que trabalha com Tom Aberant em um jornal investigativo na cidade de Denver. A história de Leila e de suas reportagens é desperdiçada e não se liga a quase nada do restante do livro. Pip Tyler reaparece aqui como estagiária do jornal. A quarta parte volta um pouco no tempo e mostra Pip trabalhando para Andreas Wolf em um lugar remoto no interior da Bolívia. Wolf é uma caricatura de Julian Assange e, como tal, se dedica a vazar informações secretas na internet. A quinta parte volta no tempo e é narrada na primeira pessoa por Tom Aberant e mostra o longo relacionamento dele com Anabel, uma mulher completamente desequilibrada. A sexta parte mostra um encontro decisivo em Aberant e Wolf na Bolívia. A sétima parte, mais curta, é um epílogo no qual Pip, enfim, assume as rédeas da sua vida.

Como se vê acima, muitos personagens e tramas, tudo resultando em uma história descabida, confusa, inverossímil. As personagens são tediosas, antipáticas, esquizofrênicas. Que prazer um autor encontra em criar personagens tão enfadonhos e maçantes? A mãe de Pip, insuportável e louca. Wolf, maluco e egocêntrico. Aberant, lerdo, maré-me-leva-maré-me-traz. Vixe. Leila, personagem completamente desperdiçado, inclusive abandonado pelo autor na história. Pip, a personagem mais interessante e que dá o título ao livro, quase não aparece, tem apenas o primeiro capítulo para chamar de seu.

Quase uma perda de tempo, nota dois em uma escala de um a cinco.

Uma vida pequena, Hanya Yanagihara, 2015

Uma vida pequena, Hanya Yanagihara, 2015, 784 páginas, Record, tradução de Roberto Muggiati.

Um excelente livro. A história de quatro amigos desde quando se conhecem na faculdade até um pouco mais do que a maturidade. O livro conta um pouco de cada um dos quatro, mas se concentra mesmo na história da vida de Jude St. Francis. A infância e a juventude de Jude foram terríveis, abusado sexualmente em um mosteiro e em um orfanato. A história é bem escrita, sem melodrama, e prende o leitor, eu devorei as setecentas e tantas páginas.

Como falha, penso que o extremo sucesso profissional dos quatro é irreal, todos, em algum momento, se tornam ricos e viajados, possuem diversos imóveis em diferentes países. Irreal. Não é uma vida pequena, embora toda vida seja pequena. Outra falha é uma certa repetição das situações em que Jude não aceita qualquer tipo de auxílio com suas dificuldades, como foi também apontado por Taize Odelli em seu blog. Não gostei, também, de certas mortes em acidente de automóvel. É muito fácil, penso, matar um personagem em acidente de automóvel. Franzen fez isso em um de seus livros e não gostei também.

Eu gostaria, ainda, que a autora tivesse explorado mais o personagem JB, fascinante e controverso, mas que fica à margem da história de Jude. JB e Jude são os melhores personagens, enquanto Willem e Malcolm são aguados. Vale muito a pena ler este livro.

A falsificação de Vênus, Michael Gruber, 2008

A falsificação de Vênus, Michael Gruber, 2008, 365 páginas, tradução de Beatriz Horta.

Encontrei esse livro em uma pilha de livros usados, promoção a dez reais. A capa, um pouco confusa, misturava Velázquez e um dos quadros dele, mas, mesmo assim, me fez pegar o volume. Gostei bastante do livro e da história, intrigante, mas não gostei do final. De início, a história conta de um talentoso pintor de Nova York que se mal sustenta com pequenos trabalhos de ilustração para revistas. O pintor recebe uma encomenda para refazer um teto de um palácio em Veneza. Ao mesmo tempo, o pintor tem visões, ou momentos de ausência, em que se vê como Velázquez, pintando e vivendo na corte espanhola do século xvii. Em outros momentos, o pintor pobre acorda e se vê como um pintor famoso e rico em Nova York. A história também trata com bastante verossimilhança da falsificação de quadros. É um enredo interessante e prende o leitor. Entretanto, o final indefinido, a falta de clareza sobre “o que é a verdade” estraga o prazer da leitura, na minha opinião.

Elena Ferrante

Elena Ferrante. 1) A amiga genial, 331 páginas. 2) História do novo sobrenome, 470 páginas. 3) História de quem foge e de quem fica, 416 páginas. 4) História da menina perdida, 480 páginas. Tradução: Maurício Santana Dias.

Deixei para falar de Elena Ferrante quando terminasse de ler a tetralogia napolitana. Muito já se escreveu sobre esses livros de Ferrante, vou ser breve, então. Leia logo, vale a pena. O leitor não consegue parar de ler depois que começa. No quarto volume, a própria Ferrante define o que faz com que seus livros sejam tão deliciosos: ela tem o prazer de narrar. Nada de subterfúgios, técnicas pós-modernas, malabarismos. Ferrante conta uma bela história do começo ao fim, de forma direta e apaixonante. A história da amizade e de certo ódio mútuo entre duas amigas, da infância até a velhice. É uma história de fôlego, observe a quantidade de páginas total e por volume. De todo modo, penso que no quarto volume a autora acelera a história. Mesmo assim, excelente leitura, muitos momentos de prazer literário que Ferrante nos oferece. Leia, leia, é muito bom.

O conto da aia, Margaret Atwood, 1985

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O conto da aia, Margaret Atwood, 1985, 368 páginas, Rocco, tradução: Ana Deiró.

O livro foi escrito em 1985 e ganhou ainda mais destaque a partir de 2016 por conta de uma série de televisão nele baseada.

A história é narrada em primeira pessoa por uma das aias, da qual não saberemos o nome verdadeiro. O enredo trata de uma distopia (lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação; antiutopia, Houaiss), gosto de livros que falam de distopias, nosso próprio planeta é uma distopia que não percebemos.

O livro retrata um lugar que era os Estados Unidos, as informações nos são passadas pela narração da aia, e apreendemos de forma fragmentada a situação e suas origens. Havia uma epidemia de infertilidade, nasciam pouquíssimas crianças, houve um golpe de estado, o presidente e o congresso foram eliminados, bem como a Constituição. Implantou-se um tipo de teocracia inspirada parcialmente na Bíblia. Todas as mulheres perderam seus direitos, as mulheres jovens e férteis foram recrutadas para os serviços de reprodução da nova classe dirigente. O antigo país está dividido e há algum tipo de guerra civil. A elite dirigente usa um sistema de Olhos, um tipo de espionagem semelhante ao Big Brother de Orwell e, evidentemente, aos sistemas nazistas e soviéticos. A aia que narra a história teve sua união anterior declarada ilegal, foi separada do companheiro e da filha. Depois de reeducada, está a serviço, sexual, reprodutivo, de um Comandante e sua Esposa, membros da alta classe governamental.

É um livro muito bom, bem escrito, longo mas não cansativo, um livro que faz pensar e que daria margem a muitas conversas com amigos, se estes não forem leitores exclusivos de twitter e whatsapp. Uma falha do livro é o apêndice que dá algumas informações extras, “históricas”, sobre o processo de desintegração social e cultural da época da aia. Penso que é apêndice desnecessário, a história é rica em si mesma, não necessitava desse tipo de “explicação”.

Vale a pena ler e reler.

O que deu para fazer em matéria de história de amor, Elvira Vigna, 2012

O que deu para fazer em matéria de história de amor, Elvira Vigna, 2012, 208 páginas, Companhia das Letras.

Li uma entrevista de Elvira Vigna no jornal Rascunho e gostei da entrevista. Decidi dar uma chance a ela, ler um livro dela. Em geral, me decepciono com os autores brasileiros atuais. Dei a chance, comprei esse livro. Não gostei. De início, até pensei que não daria outra chance a ela no futuro, todavia, ao final do livro, verifiquei que é possível ler outro dela um dia. O livro melhora no final.

A história, em primeira pessoa, a mulher, sem nome, rememora, relembra ou discorre sobre seu longo relacionamento com Roger, um filho da puta qualquer. Enquanto o faz, lembra ou imagina situações ocorridas entre dois casais de alemães, dos quais Roger descende.

Não gostei:

1. A personagem principal é uma mosca morta. Roger não gosta dela, em nenhum momento esse Roger demonstra sequer carinho por ela, mas a mulher fica lá, em volta dele, como sapo no pé do boi, submissa, opaca.

2. A autora usou aquele pequeno truque, alguns chamam isso de técnica, para mim é artifício inútil, de contar o início no final. Depois de noventa por cento do livro lido e sabido, entra-se na parte mais cronológica, mais contação de história mesmo. Não entendo, completamente, por que tantos autores insistem nessa bobagem, é para ser moderno, penso, de fazer um livro sem a vontade de, simplesmente, contar uma história 1, 2 ,3, A, B, C. Deve ser, em alguma medida, para obrigar o leitor a voltar ao início e recuperar o que perdeu porque ela só contou o início lá nos últimos capítulos. Para tornar o livro mais misterioso. De todo modo, a autora sugere, em algum ponto, que quer fazer uma fileira de dominós ao contrário, os dominós levantam em vez de cair, até que tudo adquira sentido. Para mim, não uma boa escolha.

3. A autora interrompe o voto de confiança do leitor, o leitor dá à autora essa oportunidade: vá, me conte uma história, me faça entrar em um universo criado por você, todavia a autora quebra essa contação de história para dizer: não sei agora o que fazer com Rose, não sei como foi isso, não consigo imaginar. Ora, se a autora não consegue imaginar a história, como pode ser autora?

4. A autora insiste em usar os verbos no presente quase que o tempo todo. Não importa se conta de ontem ou de dez anos atrás, é sempre verbos no presente. Confunde, incomoda, é irritante, é imotivado, é para ser moderno, deve ser.

Enfim, a história de uma mulher fraca, submissa, apagada, insípida. O enredo até anda, para a frente, evolui, mas demora a engrenar, a autora parece ter dificuldade em contar, em narrar, dispersiva. De todo modo, valeu a pena ler e pretendo, um dia, vai demorar, ler outro dela.

Trechos.

“E aí, a partir deste quase ponto-final, como um dominó ao contrário, uma vez este quase ponto-final obtido, tudo se levantará ordenadamente na minha frente.”

“As coisas, e mesmo as lembranças que ficam delas, tendem a aplastar quando há um caldo quente no lugar do ar. É uma das vantagens dos trópicos. Nada fica pontiagudo, machucando, por muito tempo. Derrete.”

“Trepadas-preâmbulos, sem resultar em gozo, mas sendo uma espécie de aperitivo, preparo interessante para a próxima.”

“Sei do susto ao perceber: se o bebê é dela, e de fato é; se de fato tanto faz o homem, e de fato tanto faz; bem, para os homens isto também é verdade. Se comportam como o bebê sendo com certeza dela. E, portanto, tanto faz se chora ou ri, se tem dente ou nadadeira, conquanto que seja longe e não atrapalhe os assuntos sérios, os assuntos de homem.”

“Com eles trepei ganindo como se não houvesse amanhã.”

“E nossos tantos reencontros foram fruto de acasos cuidadosamente preparados por mim. Armados com artimanhas e a cumplicidade de amigos em comum. Eu. Não ele. A procurar sempre reaproximações, olhares, mãos, eu-te-amos.”

“Digo que o que eu gosto, nas mulheres que dançam música espanhola com suas longas saias pretas e sapatos pesados, é do cheiro de suas bocetas quentes, não lavadas há tempo, vibrantes por causa dos golpes do sapateado vigoroso.”

“É de Ernst que traço a origem da persistência com que Roger se dedica, por tantos anos, ao que chama de sexo em estado bruto. E que consiste em idas a saunas onde o esperam toalhas sempre brancas e efebos menos brancos.”

“Amaram-se então mais do que eu possa sequer imaginar. Amaram-se não no bom, mas no pior. Quero dizer, incluindo a merda de cada um, o mau hálito, a amargura vinda do estômago e as outras, vindas do resto todo.”

 

Os mímicos, V. S. Naipaul, 1967

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Os mímicos, V. S. Naipaul, 1967, 319 páginas, tradução de Paulo Henriques Brito.

“Intimidade: esta palavra encerra o horror. Eu seria capaz de ficar o resto da vida agarrado a uns seios de mulher, desde que fossem fartos, pesados o bastante para necessitarem de um suporte. O problema era a pele, o cheiro da pele. Havia calombos e arranhões, dezenas de coisinhas que me irritavam profundamente.”

Gostei do livro de Naipaul, a quem não conhecia. A história é dividida em três partes, embora a terceira parte me pareça mais fraca, menos inspirada que as duas primeiras. Pretendo ler outros de Naipaul, quando for possível.

Naipaul tem uma história de vida muito curiosa, visto que vem de uma família indiana que emigrou para Trinidad e Tobago, uma colônia inglesa no Caribe.

A história é narrada por um homem de mesma ascendência que o autor. O personagem nos conta desde sua infância na ilha caribenha fictícia de Isabella, passando por sua juventude como estudante em Londres, o retorno para Isabella, a ascensão na política, o exílio voluntário em Londres.

Como disse, o livro é dividido em três partes, infância, juventude, idade adulta. Entretanto, e isto é um truque de escrita, o autor coloca a parte do meio no início (a juventude), depois conta a infância e, no final, a idade adulta. Eu me pergunto se esse truque, que se presta unicamente a prender o leitor, é válido, eficaz. Por que não simplificar e contar a história linearmente. Uma história A, B, C, e o autor conta assim B, A, C. Outro truque que me é desagradável: com muita frequência, Naipaul anuncia que algo vai dar errado, seja o casamento, seja a incursão na política, por exemplo. Novamente um truque para prender, despertar a curiosidade do leitor. Quando percebo esses truques, vejo apenas a técnica e não o talento, embora, no caso de Naipaul, haja muito talento.

Valeu a pena ler o livro, e o autor traz, em paralelo ao relato do personagem, uma série de pessoas e fatos históricos e mitológicos que me interessaram sobremaneira, como Asoka, Hailé Selassié, Perseu, Eneias, Marco Valério Marcial.

Trechos:

“Um rosto inocente, sem nada de especial, despido do fascínio que a devassidão e a palavra ‘amante’ deveriam emprestar-lhe.”

“Agora a saia e a blusa padronizadas da loja transformavam seus seios e quadris em volumes amorfos.”

“Eu que vinha dos trópicos, onde a noite substituía o dia abruptamente, achava o crepúsculo uma coisa nova e encantadora.”

“Também não sei por que comecei a anotar num diário minhas conquistas sexuais. Lembro que comecei por puro tédio e falta do que fazer, mas em pouco tempo a coisa virou uma espécie de empreendimento auto-erótico. Era a mim mesmo, minhas mais sutis reações, que eu queria analisar. Ridículo! Abjeto! Era o que eu próprio achava na época.”

“Os políticos são pessoas que verdadeiramente fazem algo a partir do nada. Pouco de concreto têm a oferecer. Não são engenheiros nem artistas; nada constroem. São manipuladores; oferecem seus serviços de manipulação.”

“Meu pai entrou, ainda com o grampo na bainha da calça que usava para andar de bicicleta, a jaqueta tropical frouxa e suja nos bolsos, o rosto cansado, os olhos úmidos por trás das lentes dos óculos.”

“Ninguém, nem professores nem alunos, naquela época, tinha quaisquer escrúpulos em relação a ferir as suscetibilidades raciais ou políticas dos outros. O curioso resultado dessa atitude era que quase ninguém se sentia ofendido.”

“Meu pai havia sido morto a tiros, juntamente com uma mulher. A arma utilizada fora uma Luger. Aquela notícia pedia uma resposta. Pedia sentimento e o oposto de sentimento. Caminhei pelas ruas. Mais tarde, saí com uma prostituta. A notícia mal cabia dentro de mim.”

“Mas, para falar com franqueza, não sentia muita admiração pelos escritores, enquanto pessoas, por mais que admirasse suas obras. Eu os considerava pessoas incompletas, para quem o ato de escrever substituía aquilo que, na época, eu me comprazia em chamar ‘vida’.”