Tudo o que nunca contei, Celeste Ng, 2014, 304 páginas, Intrínseca, tradução de Júlia Sobral Campos.
Este é o que chamo de livro redondinho. Como em Elena Ferrante, a autora quer contar a história e fazer com que saibamos de quase todos os acontecimentos. E essa moça, Celeste Ng, fez os cursos de escrita direitinho, ou seja, ela sabe usar os recursos (ou truques) literários para prender e interessar o leitor. Veja-se que o romance começa por declarar que Lydia, uma menina de quinze ou dezesseis anos está morta, enquanto a família e a polícia começam a procurar por ela. Daí em diante, entre idas e vindas temporais, a autora nos conta como tudo que cerca aquela família culminou com a morte da menina. Há, vez ou outra, um excesso de sentimentalismo, mas não compromete. Não ficam pontas soltas ou personagens desperdiçados. Nota três de cinco.
Trechos:
Lydia está morta. Mas eles ainda não sabem disso. Dia 3 de maio de 1977, seis e meia da manhã, ninguém sabe nada a não ser por este fato inofensivo: Lydia está atrasada para o café da manhã.
Então, em vez de Harvard, uma proposta, enfim, da humilde Middlewood College, que foi aceita com alívio. Em vez de Boston, uma cidadezinha em Ohio. Em vez da faculdade de medicina, um casamento. Nada como fora planejado.
Você pode voltar e terminar esse último ano quando o bebê estiver maior. Levaria quase oito anos até que os estudos parecessem reais, possíveis e tangíveis outra vez, mas Marilyn não sabia disso.
James não consegue encontrar uma forma de lhe dizer o que descobriu ao identificar o corpo de Lydia: só resta metade do rosto, mal preservada pela água fria do lago; metade foi corroída.
Estava triste? Estava com raiva. Furiosa com a pequenez da vida de sua mãe. Isso, pensou ferozmente, tocando a capa do livro de receitas. Isso basta para me lembrar dela. É tudo que quero guardar.
Eu poderia ter feito isso, pensou Marilyn, e as palavras se encaixaram feito peças de um quebra-cabeça, chocando-a com sua precisão. O futuro do pretérito, o tempo verbal das oportunidades perdidas.
Marilyn ficou sentada por um bom tempo, segurando a caneta esferográfica, sem saber como terminar. Acabou rasgando o bilhete e jogando os pedaços no lixo. Decidiu que era melhor simplesmente partir. Desaparecer da vida deles como se nunca tivesse estado ali.
Ao contrário de certas pessoas, eu não fico bajulando a polícia. No calor da fúria, Marilyn não pensa duas vezes no que diz. Já para James, a expressão sai da boca da mulher feito um tiro que se aloja no fundo de seu peito.
Ele ensaiou o que diria a Louisa tantas vezes que acordou naquela manhã com as palavras nos lábios. Foi um erro. Eu amo a minha mulher. Isso não pode voltar a acontecer. Agora, quando ela abre a porta, o que sai de sua boca é:
“Ela mal fez dezesseis anos.” Agora, olha para as duas caixinhas, presas na prega da sua saia, e os contornos da vida de Lydia — antes tão claros e definidos — começam a ondular.
Na primeira vez, doía tanto que seus olhos lacrimejavam. Na segunda, doía um pouco menos. Na décima vez, mal podia ser considerado dor. Portanto, ele lia e relia o bilhete.
Ele nunca tinha batido em Nath, e nunca mais voltaria a fazê-lo. Mas algo entre eles já tinha sido rompido. Nath saiu rapidamente dali com a mão na bochecha, seguido por Lydia, (…)
Já Marilyn dizia a si mesma todas as vezes que desligava o telefone que aquela seria a última ligação, que não voltaria a ligar, que aquilo provava que sua família estava bem, que ela tinha começado uma nova vida. Dizia isso a si mesma com tanta firmeza que acreditava plenamente, até que se via outra vez discando o número de casa.
Seu grande plano durara nove semanas. Tudo com que sonhara para si desapareceu, como uma névoa fina na brisa. Ela já não lembrava por que achara que aquilo tudo seria possível. É isso, Marilyn disse a si mesma. Supere. É isso que você tem. Aceite.
Agora Lydia encarava o pai, que sorria para ela alegremente, como que orgulhoso por saber tanto sobre suas amigas, de lembrar seus nomes. Um cachorro, pensou ela, esperando um biscoito.
À tarde, ele acaba no apartamento de Louisa, mergulhando em seus braços, então entre suas pernas, onde felizmente sua cabeça se desliga.
Fora do carro, que tem o ar carregado do cheiro de escapamento e graxa, James percebe que dá para sentir o perfume de Louisa em sua pele, almiscarado, picante e doce. Ele se pergunta se Nath também sente.
Antes ainda: naquele primeiro dia, quando ela se debruçou na mesa dele e o beijou, tirando seu fôlego feito um soco repentino e ágil. Milhões de pequenas chances de mudar o futuro. Eles nunca deveriam ter se casado.
É o tipo de coisa que todo homem diz para a amante, mas para ele aquilo é uma revelação. Semiadormecida nos braços dele, Louisa não ouve, mas as palavras serpenteiam em seus ouvidos, dando-lhe os sonhos emaranhados de todas as outras outras. Ele vai deixá-la… vai se casar comigo… vou fazê-lo feliz… não haverá nenhuma outra mulher.
Marilyn a examina cuidadosamente. Cabelo longo cor de nanquim, longos cílios sobre olhos voltados para baixo, a boca pequena, feito a de uma boneca. Uma coisinha tímida. Tão diferente de mim, pensa com uma pontada, quanto uma garota pode ser.
Marilyn espera, deixa que Louisa se inquiete. Suas mãos pararam de tremer. Por dentro, ela sente uma raiva silenciosa e fumegante.
Ainda olhando para o tapete, Marilyn comprime os lábios. — Ela é muito nova. Quantos anos tem? Vinte e dois? Vinte e três? — Marilyn. Pare com isso. Marilyn não para.
As pessoas amam tão intensamente e têm tantas expectativas para depois acabarem sem nada. Filhos que já não precisavam de você. Um marido que já não queria você. Não resta nada além de você, sozinha, e um espaço vazio.
Finalmente disse o que mais temia, o que ela mais queria ouvir: Finja que você nunca me conheceu. Que nada disso aconteceu. Ele desfez o maior erro da vida dela. Só que — e ele não pode negar, por mais que tente — Marilyn não pareceu agradecida. Ela recuou, como se ele tivesse cuspido em seu rosto.
Tudo que parecera tão imenso de perto — a escola, seus pais, suas vidas —, bastava se afastar para que encolhesse e desaparecesse. Dava para parar de atender aos telefonemas, rasgar as cartas, fingir que eles nunca haviam existido. Recomeçar como uma nova pessoa com uma vida nova.
(…) o grito de Lydia, o tom estridente de sua voz. Aquilo desapareceria da lembrança que guardaria de Lydia, do jeito que as lembranças que guardamos das pessoas amadas sempre se suavizam e se simplificam, perdendo complexidade como se fossem escamas.
Eles vão dissecar essa última noite durante anos a fio. O que passou despercebido que deveriam ter notado? Que pequeno gesto, esquecido, poderia ter mudado tudo? Vão analisar os mais ínfimos detalhes, perguntando-se como aquilo tudo dera tão errado, e nunca terão certeza de nada.